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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

A FÁBULA SOBRE O DEMÔNIO QUE QUERIA SER SANTO


inferno. [ Do lat. infernu.] S. m. 1. Rel. Lugar de privação definitiva da comunhão com Deus. Lugar onde se encontram os que morreram em estado de pecado, submetidos á repreensão divina.

demônio. [ Do gr. daimónion, pelo lat. daemoniu.] S. m. 1. Nas religiões judaicas e cristãs, cada um dos anjos caídos do inferno, sujeitos á Lúcifer ou Satanás.




“Para que tua felicidade não nos torture,
Você se cobre dos apetrechos do diabo...
De diabólica astúcia e indumentária.
Em vão! Pois em seu olhar
Reluz a santidade”
Friedrich Nietzsche



    Inferno. Lugar do terror absoluto, e povoado por apenas duas espécies distintas: os humanos mortos condenados por seus crimes contra a vida, e seus respectivos e eficientes algozes. Seus atrozes verdugos, conhecidos genericamente como demônios. Neste lugar horrível, apenas há lugar para a dor.


    Em um de seus mais cruéis departamentos (cujo nome omitirei por razões pessoais) encontrava-se um demônio da famosa casta dos Incubbus, que por mais uma das infinitas ironias deste nosso insondável universo possuía uma estranha, anormal propensão para a arte e a virtude. Sim. Acredite se quiser, este ex-anjo cuspido da Cidade de Prata havia por algum motivo qualquer cansado das sádicas diversões infernais, e agora - apartando-se de seus semelhantes - isolava-se para criar e compor.


    Sentado solitário em um canto onde não pudesse ser visto por ninguém, Plutus dedicava-se por horas a fio a escrever poemas com a vergonha de quem sabe que está fazendo algo abominável. Plutus era – para o horror de todo o universo – um demônio poeta. Suas tardes solitárias com seus papéis e sonhos foram durante muito tempo ignoradas por seus irmãos, até que seu olhar e trejeitos finalmente o denunciaram. Plutus já não era mais visto torturando ou enganando aos homens, e seu rosto há muito tempo já havia abandonado o semblante de rancor e zombaria que muito caracteriza sua espécie. Não demorou muito para que ele fosse motivo de comentários - no princípio, esparsos – entre os outros demônios até que, por fim, convencidos de que Plutus já não era mais um deles, reuniram-se em uma turba, lincharam-no eficiente e impiedosamente até quase matá-lo (só não o mataram porque os demônios não morrem), e abandonaram-no – ou o que sobrou da pobre criatura  - do lado de fora dos enormes portões do Pandemônio. E Plutus fora, assim, expulso do inferno pelos seus próprios irmãos.



    No princípio Plutus chorara muito, pois sabia que não havia lugar para ir. A Cidade de Prata, supostamente, jamais aceitaria de volta a qualquer decaído: até então nunca ninguém havia escutado falar de algum renegado que houvesse se arrependido e – perdoado por Deus e pelos seus soldados – aceito novamente, e retornado para lá. E só a idéia de encarar a algum Arcanjo ou Serafim de frente o deixava aterrorizado. E o único lugar do universo inteiro que ele um dia pôde chamar de “lar” depois de sua caída – o inferno – nunca mais o receberia de volta. Plutus chorava sozinho e sem esperança alguma, abraçado como uma criança aos seus amarrotados e encardidos papéis, seus poucos poemas que haviam escapado do linchamento com ele. Sua situação era a mais desditosa e cruel de toda a história da criação: era ele um fugitivo de Deus, e de Satanás. Suas lágrimas caíam sobre seus poemas, borrando-os, e seu choro baixinho e desesperançado não fora ouvido por ninguém. Plutus era, naquele momento, o ser mais solitário e desgraçado de toda a existência.



    Durante muito tempo o pobre demônio vagou errante pelas fronteiras de todos os mundos, sem poder estabelecer-se em lugar algum. Plutus naturalmente aterrorizaria a qualquer ser vivo que o enxergasse - por sua aparência naturalmente demoníaca - por isso ele mesmo tratou de evitar ser tratado com repugnância, ojeriza ou pavor pelos outros seres, mantendo-se eficazmente isolado de todos. Chegando ao mundo dos homens, buscou refúgio em uma inacessível floresta, passando seus dias de solidão alternados entre a profunda tristeza de saber-se incompreendido e injustiçado pela vida, com seus raros momentos de meditação, contemplação, e a criação de novos (e mais melancólicos que nunca) poemas.   

    Até que em um dia qualquer Plutus escuta uma voz humana no meio da floresta, e curioso aproxima-se dela. Com muita cautela para não ser visto, esconde-se por detrás de uma macieira e percebe que a voz que ouvira era a de um jovem rapaz que, ajoelhado, fazia suas orações. Tratava-se de um monge franciscano que - buscando sua santidade - havia se afastado do convívio com as pessoas, resignando-se a passar o resto de seus dias jejuando só, acompanhado apenas de sua fé e de suas orações. O pequeno demônio sabia da existência de monges, e muito bem sabia que havia encontrado a um jovem santo. Curioso e ao mesmo tempo maravilhado, Plutus passou dias e dias observando-o á distância, completamente admirado pelo fato de que aquele jovem homenzinho não parecia nem um pouco interessado pelos prazeres da matéria: comia apenas pão, bebia apenas água, e desinteressadamente passava seus dias louvando a Deus em suas diárias e metódicas orações. Nada mais, além de Deus, parecia ter valor algum para aquele rapaz.



    Com o passar do tempo – de tanto observar ás escondidas - Plutus não só já sabia de cor ao Pater Noster e todas as demais orações cristãs, como também havia aprendido com o jovem que a sua solidão não era algo tão terrível assim, pois era algo que o próprio monge também passava... e por sua livre e espontânea vontade. E com o passar do tempo ele também já havia absorvido todo aquele espírito de renúncia e compaixão que transbordava pela serenidade daquele homem de tal forma, que os pequenos animais da floresta que brincavam e acompanhavam ao monge - até mesmo os mais puros, como os pequeninos e frágeis pássaros, esquilos e borboletas – agora já aproximavam-se corajosamente também de Plutus, enchendo seu coração de demônio com uma ternura que ele jamais imaginou um dia ser capaz de sentir. E, pela primeira vez em toda a sua vida, o renegado Incubbu sentiu em seu coração o que os humanos chamariam de “felicidade”, e – arrependido amargamente de todas as atrocidades que cometera no passado – Plutus chorou copiosamente pela segunda vez em sua existência, mas esse era um choro bem diferente do anterior... Suas lágrimas, agora, eram de redenção. 



    Impelido pelos pequeninos animais (que agora até mesmo comiam de sua mão) Plutus, depois de muito pensar, decidiu que tentaria comunicar-se com o jovem santo. Tímido mas decidido, dirigiu-se á beira do rio a onde o rapaz sempre ia para buscar água, e sentou-se furtivamente a esperá-lo. Depois de algumas poucas horas de espera, o rapaz finalmente aparecera. Era chegado o momento.



    Quando o rapaz terminara de encher seus cântaros com água, o resoluto demônio saiu por trás da mesma macieira de onde ele havia se escondido em a primeira vez em que viu ao monge e aproximou-se devagar, até que o ruído dos seus próprios passos atraiu-lhe a atenção. Quando por fim o monge olhou para Plutus e viu que tratava-se indubitavelmente de um demônio, assustou-se de forma tão intensa que quase desfalecera, mas manteve sua postura e começou a tentar esconjurá-lo em latin, recitando rápida e fervorosamente suas sentenças.



-          Imploro-te, meu senhor, não tenhais medo – disse Plutus calmamente – não quero causar-te mal algum.

-          Vade retro, daemoniu – exclamou o monge, desesperado – “Não afastes de mim teu espírito de força, Senhor”...- começou a recitar, olhando para a sua cruz -  “não me deixes cair em tentação.”

-          Por favor, senhor, acredita.

-          Que ardis o trazes a mim, decaído? Serei eu tentado por vós da mesma maneira como o foi Jesus, em o Monte das Oliveiras? Perdes teu tempo comigo, infame embusteiro. De mim, nada poderás lucrar.

-          Senhor, não me trates dessa forma... Sei bem o que sou... mas quero que saibas que vejo-te há muitos dias, e não só respeito e admiro vossa empresa, como desejo servi-lo, acompanhá-lo... e aprender contigo a amar a esse Deus a que tanta fidelidade e carinho dedicas.

-          Como te atreves a proferir tal blasfêmia? – gritou o rapaz – como podes pensar que eu acreditaria em semelhante absurdo? Um demônio que quer aprender a amar Deus! Aterroriza-me pensar que espécie de indústria macabra estais a tramar com semelhante calúnia...

-          Como poderei convencer-te, ó santo e imaculado senhor?... Dou-te minha palavra de honra de que venho cá à vossa mercê de mui boa fé...


-          Jamais crerei em tuas venenosas palavras, Satanás – respondeu o monge com a voz trêmula, afastando-se de costas com seus cântaros de água, trôpego – sei que meu amado Pai permitiu que tu viestes a mim com o intuito de testar minha fé... e digo-lhe que não temo que me possas fazer mal algum, pois muito bem sei que Ele jamais me abandonará. Nada podes fazer contra mim, imundo, pois nenhum desejo carnal corrompeu meu espírito. Volta para o inferno pagão que o expeliu, monstro maldito.



    E, dizendo isto, o rapaz rapidamente desapareceu na floresta, deixando para trás um desesperançado semblante no rosto de Plutus. E, uma vez mais, seu coração estava dolorosamente despedaçado. 



    Depois desse diálogo com o jovem monge, Plutus nunca mais o encontrou. Ele mesmo não teve a coragem de aproximar-se novamente de onde o rapaz vivia, sabendo que isso não traria nada de positivo, e muito pelo contrário, apenas aumentaria o terror e a desconfiança do monge para com suas verdadeiras intenções. E pouca coisa é pior para uma alma bem-intencionada do que ser vista injustamente por todos, não importando o que faça.
Só lhe restou resignar-se com a sua situação da melhor maneira que pudesse.




    E assim foram se passando os anos, um após o outro, até que depois de muitas e muitas décadas de solidão Plutus havia se tornado um velho e solitário eremita de chifres, com uma longa e branca barba, e completamente apartado da inteligência dos homens. Depois de tanto tempo de solidão, já há muito tempo não era capaz de escrever uma palavra sequer, tantos anos em que havia ficado sem comunicação alguma com outro ser que falasse. Nem mais se lembrava de como escrevia seus belos poemas: todos os seus escritos foram largados ao chão naquele mesmo fatídico dia em que se aproximara de aquele jovem.


    Seus dias resumiam-se em beber água, comer maçãs, e fugir da aproximação de qualquer ser humano, para não passar pelo desgosto de ser visto como algo horrendo e maligno. Plutus agora temia encontrar-se com qualquer pessoa, santo ou ladrão, pois sabia que tal encontro só lhe traria novamente toda a dor de sua sina. Corria apavorado para a direção oposta quando escutava vozes, e escondia-se como um cão vadio.



    E como estava vivendo no plano material (na Terra), junto com o avanço de sua velhice sua saúde foi se desvanecendo, pouco a pouco, até que em uma noite escura qualquer - sem vento e sem lua no céu - Plutus deitou-se ao relento para morrer da mesma forma como passou quase toda a sua existência. Sozinho.


    E então, quando vira que chegava sua hora de partir, imagens de toda a sua infrutífera busca por uma vida nobre e pacífica, e toda a hostilidade que sofrera de todos os outros demônios - e dos homens - passaram de uma só vez por suas lembranças, e a certeza de que finalmente, com sua morte, todo o seu sofrimento e desesperança findariam, fez com que junto com seu último suspiro de vida rolasse em sua face uma única e solitária lágrima.
Solitária como ele. E Plutus morreu.



Epílogo

    Sua consciência desprendeu-se de seu velho corpo e subiu, fazendo-o olhar assustado para baixo e ver a si mesmo morto ao relento, em meio á escuridão da floresta. Viu pela primeira vez como seu corpo estava velho e disforme, mas quando olhou para si próprio (e não para o corpo material que jazia lá em baixo) viu que já não mais possuía aquele aspecto demoníaco de antes, e sim havia voltado para uma forma - tão antiga quanto bela - que um dia ele possuiu, há incontáveis milhares de milhares de anos atrás, quando possuía hermosíssimas asas brancas e habitava junto com outros anjos a maravilhosa Cidade de Prata. Como todos os outros demônios, um dia Plutus fora um dos soldados do Altíssimo, e agora talvez pela primeira vez na história de todo o universo Deus perdoara a um decaído, aceitando-o de volta ao seu antigo lar.
    Então Plutus decidiu que voltaria, uma vez mais, a chamar-se Mercyel, voou em direção ao alto até poder ver, ao longe, á Cidade dos Anjos, e perceber que lá uma grandessíssima celebração começava a ser iniciada - com a alegre participação de todos - e Mercyel então aproximava-se, quase certo de que sabia para quem toda aquela celebração estava sendo preparada, mas não chorou. A época das lágrimas havia terminado.


Finis Operis


“Nem sequer entrevejo o céu...

Meus olhos estão toldados de lágrimas.

O fogo do inferno é uma fagulha ligeira, comparado ás labaredas a devorar-me a alma.

O Paraíso é, para mim, somente um instante de paz.”


Omar Ibn Ibrahim, “Rubáiyát” (aprox. 1100 d. C.)






“...Eu gostaria de ser uma montanha.
Uma montanha enorme e verdejante.
Alcançaria as nuvens...
Magnitudes divinais.

Sou um escaravelho acostumado a altíssimas temperaturas...
Mas a minha alma ainda é verdejante.

Aquele que se destemer, e ir além,
descobrirá onde a música ganha sabor e cor...
E a tempestade esvairece.”




{fragmento de um poema branco feito por uma garota humana (R. C.), supostamente dedicado á Mercyel}





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6 comentários:

Saides LaMarca disse...

“...O eu fenomenal apóia-se no Ego Puro (ou Atmã) que tem a mesma natureza do Fundamento Divino de todo o ser. Fora do ‘quarto principal onde ninguém além de Deus pode penetrar’ ( a não ser que a alma tenha se tornado altruísta), que é onde se encontram o Eu consciente fundido ao próprio Fundamento Divino, fica a ‘mente subliminar’, quase impessoal em seus limites indefinidos, mas prestes a cristalizar-se, quando se aproxima do Eu ‘fenomenal’, no subconsciente pessoal, com seus acúmulos de ‘detritos sépticos’, seus bandos de ratos e besouros negros e seus eventuais escorpiões e víboras. Esse subconsciente individual é o covil do criminoso lunático que nos habita, o próprio lócus do Pecado Original. Mas o fato de o subconsciente individual estar associado ao ‘maníaco’ não é incompatível com o fato de estar também associado (de forma inteiramente inconsciente) com o Fundamento Divino. Nascemos com o Pecado Original; mas também nascemos com a Virtude Original – com a aptidão para a ‘graça’, na linguagem teológica ocidental; com uma centelha, uma característica superior da alma, um fragmento de consciência não decaída, que subsiste no estado de inocência primal e é conhecido como a Synteresis. Os psicólogos freudianos dão muito mais realce ao Pecado Original que à Virtude Original. Eles estudam atentamente os ratos e os besouros negros, mas parecem relutar em ver a Luz Interior. Jung e seus seguidores têm se mostrado um pouco mais realistas. Ultrapassando os limites do subconsciente individual, começaram a explorar o domínio onde a mente, tornando-se cada vez mais impessoal, é absorvida pelo meio psíquico a partir do qual os egos individuais são cristalizados. A psicologia junguiana vai além do maníaco imanente, mas detém-se a pequena distância do Deus Imanente.
E, no entanto, torno a dizer, existem inúmeras provas da existência da Virtude Original que subjaz ao Pecado Original. O conhecimento de que existe um ‘compartimento central’ da alma, iluminado pela Luz do Amor e pela Sabedoria Divina, tem se revelado no curso da história para milhões de seres humanos.”


Aldous Huxley, “The Devils of Loudun”

Cássia disse...

Muito bonita essa história Saides!!
Parabéns!!!

karol disse...

cada vez mais voce me deixa sem palavras posso falar de coraçao essa me emocionou pois fala do tamanho de Deus por todos se tiveres fé e amor no coraçao o senhor Altissimo de sustentara ..
muito linda e pura sua historia muito obrigado por me dar a chance de ler essa fabula .. Muito grata bjos e parabens pelo seu talento continue a escrever pois e um dom de poucos ..

Saides LaMarca disse...

Synderesis, or more correctly synteresis, is a term used by the Scholastic theologians to signify the habitual knowledge of the universal practical principles of moral action. The reasoning process in the field of speculative science presupposes certain fundamental axioms on which all science rests. Such are the principle of contradiction, "a thing cannot be and not be at the same time," and self-evident truths like "the whole is greater than its part". These are the first principles of the speculative intellect. In the field of moral conduct there are similar first principles of action, such as: "evil must be avoided, good done"; "Do not to others what you would not wish to be done to yourself"; "Parents should be honoured"; "We should live temperately and act justly". Such as these are self-evident truths in the field of moral conduct which any sane person will admit if he understands them. According to the Scholastics, the readiness with which such moral truths are apprehended by the practical intellect is due to the natural habit impressed on the cognitive faculty which they call synderesis. While conscience is a dictate of the practical reason deciding that any particular action is right or wrong, synderesis is a dictate of the same practical reason which has for its object the first general principles of moral action.

Ariany Seguezze disse...

fabuloso!!!...idéias mirabolantes que nos leva a uma viagem quase real.Parabéns Saides

Ariany Seguezze disse...

Fabuloso Saides!!...idéias mirabolantes que nos leva numa viagem quase real...Parabéns