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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

UMA INTRODUÇÃO AOS OBJETOS MÁGICOS EGÍPCIOS


“Em o vestíbulo do horizonte, fiz Eu quatro boas coisas:
Fiz os quatro ventos, para que todo homem possa respirar como todos os demais.
Este foi Meu primeiro ato.

Fiz a grande inundação, para que o homem pobre tenha direitos sobre ela,
da mesma forma que os ricos e poderosos.
Este foi Meu segundo ato.

Fiz a cada homem igual ao seu próximo, e não lhes mandei que fizessem o mal,
senão que foram seus próprios corações que violaram o que Eu disse.
Este foi Meu terceiro ato.

E fiz com que seus corações não esquecessem da Morte,
para que fossem feitas as divinas oferendas aos deuses.
E este foi o Meu quarto ato.”

Alegato ao imperador egípcio Amen-em-het, Dinastia X (aprox. 2100 a.C.)


    A serena e misteriosa Esfinge fora durante muitos séculos um mistério para a civilização moderna, mas na verdade trata-se apenas de uma variante de uma espécie de magia, feitiço, muito comum naquela época antiga. Principalmente em Kemet – terra mais conhecida como “Egito”.

    Em Kemet - mais do que em qualquer outra civilização - fora muito comum o uso de totens e estátuas em sua magia cerimonial. Vemos essas estátuas mágicas também em quase todas as outras civilizações primitivas, desde as pré-ibéricas como as astecas, maias e incas, como também em muitos outros lugares longínquos, como os “Moais” da Ilha de Páscoa, o “Stonehenge” da terra dos druidas, e até mesmo os pequenos bonecos de cera usados pelo Voodoo do povo da pele negra. Mas nenhum de todos esses povos utilizou-se tanto da magia – e, conseqüentemente, de seus “totens” – como os egípcios.

    Durante o período áureo da feitiçaria egípcia (que os tornaram – com seus sacerdotes bruxos - temidos até pelos mais perigosos soldados inimigos), era prática comum entre a aristocracia egípcia (leia-se “faraós”, horrível barbarismo difundido pela ignorância do povo egípcio iletrado á partir da Dinastia XIX, visto que a tradução exata da palavra faraó seria “Palácio Real” ou, literalmente, “Grande Casa”) construírem opulentas, magnânimas sepulturas a fim de exibirem para a posteridade seu poderio financeiro possuído em vida. Vemos em muitos livros escritos por “especialistas” que os tais “faraós” foram “enterrados com seus tesouros e bens pessoais, para que eles pudessem utilizá-los em sua vida após a morte”. Mas a verdade é que quase todos os objetos pessoais do cadáver eram inutilizados antes de armazenados (a arqueologia egípcia chama a isso de “matança de peças”) para não poderem ser usados também por possíveis saqueadores de tumbas, prova cabal de que tal alegação não passa de uma das centenas de “romantizações” baratas perpetradas por curiosos amadores e por “egiptólogos” sonhadores. Seus objetos pessoais foram preservados em suas sepulturas pura e simplesmente como exemplos á posteridade de suas “faraônicas” riquezas, e de sua cultura. Mais para frente o leitor paciente descobrirá o quê realmente estava destinado a acompanhá-los em sua pós-vida.

    Como o tema principal desta pequena semiótica é a esfinge, falarei sobre a magia egípcia apenas sobre o que diz respeito á quatro de seus mais famosos fetiches mágicos: ela mesma, a Esfinge; os famosos escaravelhos egípcios de Khepri construídos em cerâmica (ou pedras preciosas, como lápis-lazúli ou abscediam); os - mais conhecidos pela egiptologia séria – Ushabtis; e, por último, seus terríveis Anathemas.

    Quando H. Carter descobriu Thoth-Ank-Amon (que depois passou a ser “Tutankamon” para melhor viabilizar o merchandising de souvenirs), a civilização moderna ocidental teve contato com a única múmia egípcia encontrada intacta e ainda com grande parte de seus tesouros. Por mais estranho que possa parecer, por todos os milênios em que “Tutankamon” permaneceu enterrado, não fora visitado furtivamente pela madrugada por mais nenhum grupo de saqueadores (depois de dois pequenos saques, com o último deles talvez pego em flagrante), muito embora a história ter demonstrado que quase todas as tumbas egípcias foram invariavelmente saqueadas, e muitas vezes por ex-funcionários (ou parentes de), e muitas vezes a pedido de seus próprios ex-sacerdotes. Junto com todas as demais corrupções políticas que já existiam naquela época (e muito bem articuladas, por sinal, em grande parte graças ás “boas” influências romanas), a compra e a venda de produtos dos saques de tumbas chegaram a se tornar a mais promissora e lucrativa fonte de renda do mercado negro egípcio. Por que “Tutankamon” não fora totalmente roubado? Para depois tentarmos decifrar a esse “enigma esfíngico”, falaremos agora sobre os escaravelhos.

    Os escaravelhos – como os escorpiões - são aracnídeos muito comuns no norte da África. A antiga civilização egípcia talvez tenha adquirido particular afeição por esse pequeno ser por ele ser inofensivo (não possui presas, ferrão ou veneno, podendo ser manipulado até mesmo por crianças), e por seu instinto peculiar de perpetuação de sua espécie: Como para construir seu ninho o escaravelho utiliza-se do esterco, o egípcio concluiu que estava aí um exemplo perfeito tirado do próprio universo para a eternização do ciclo de vida e morte, visto que a partir de uma matéria orgânica “morta” o pequeno animal gerava nova vida. Ainda pela observação do pequeno animal carregando bolas de esterco, o egípcio imaginava que - da mesma forma - Khepri também carregava a esfera do Sol, que durante a noite havia abandonado a Terra para iluminar o reino dos mortos. Os escaravelhos eram seres solares por excelência. Com isso, para o antigo egípcio, os escaravelhos eram talismãs vivos, representativos perfeitos da eternidade do ciclo da vida. Com o passar do tempo os escaravelhos tornaram-se parte da cultura egípcia na forma de variadas coisas, como símbolo pictórico hieróglifo (sua significação hieroglífica é a palavra “tornar-se”), sinete comemorativo, talismã mágico de proteção, e – principalmente – como o coração do Ka de sua respectiva múmia.

    Uma das crenças do povo religioso egípcio era o de que todo ser humano possuía dois corpos etéreos (não-materiais): sua própria alma – chamada por eles de Ba, e seu “invólucro”, que além de lhe dar sua aparência estética que depois seria imitada por seu corpo físico (ou será que era ela que imitava o corpo?), também era onde ficava armazenado o ego de seu dono (com sua personalidade, caráter, etc) chamada de Ka. Como os egípcios acreditavam que sua alma constituía-se em essência apenas pelo Ba, enquanto que o Ka tratava-se apenas de uma imitação “descartável” do corpo físico e da alma de seu dono, seus feiticeiros tiveram a idéia de aproveitarem o Ka (significa “duplo”) da mesma forma como o homem moderno utiliza-se de um cão de guarda. Para fazerem isso, os embalsamadores (o principal deles era chamado pomposamente de “o controlador dos mistérios”) precisavam extrair o coração da múmia, substituindo-o pelo escaravelho mágico: a idéia era impedir o Ba de voltar a unir-se ao Ka e a seu antigo corpo físico. Depois de realizados seus respectivos rituais, a alma (Ba) do falecido já não mais habitava seu corpo e havia se desprendido (libertado?) de seu Ka, que - através do talismã-escaravelho – ficava então aprisionado em sua múmia. Era como se a partir de então o corpo mumificado ainda estivesse com sua própria alma, mas na verdade o que permanecera nela era apenas seu “duplo”. Esse duplo (Ka) é uma cópia tão fiel de seu Ba que até mesmo “ele” próprio pensa se tratar do próprio “faraó”: conseqüentemente, ele fará de tudo para impedir qualquer ladrão de saquear “seus” tesouros, ou mesmo interromper “seu” descanso. O sentinela - ou guarda-costas - ideal.

    Aliás, um fato muito interessante desse bizarro fenômeno místico é que pouquíssimas pessoas seriam capazes de “ver” a esse “fantasma”. A maioria das pessoas - quando adentrasse em essa respectiva tumba – apenas sentiria sintomas variados em intensidade e gênero, desde um simples enjôo ou tontura até sintomas maiores, como uma súbita sensação de pânico e/ou perseguição. Poucas são as pessoas que seriam capazes de visualizar a esse Ka fantasmagórico. E o mais estranho de tudo isso é que na verdade o Ka nunca passará do que ele realmente parece ser: um simples fantasma. Ou seja, como ele não é formado por matéria (como entidade não-plasmada que é) ele não representa ameaça física alguma para sua vítima. E como ele constitui-se apenas do Ka residual de seu ex-dono, ele nem mesmo é um espírito real. Por mais que “ele” mesmo pense se tratar de um.

    Entre os europeus há uma expressão que define muito bem essa espécie de fenômeno: Poltergeist. De acordo com essa concepção parapsicológica, tanto um Poltergeist quanto um Ka tratam-se apenas de “rastros” do espírito humano, como se fossem “moldes”, “pegadas” sem uma alma real. De acordo com tal teoria, uma casa assombrada por fantasmas na verdade não está “habitada” por ex-seres humanos, mas apenas pelas energias residuais de seus sentimentos mais intensos, como rancor, arrependimento ou medo. Geralmente, esses sentimentos intensos residuais são gerados por mortes violentas.

    E, voltando ao “enigma esfíngico” de a tumba de Tutankamon não haver sido totalmente violada (de acordo com Carter, ela “quase foi, e por duas vezes”), penso ter sido devido ás punições a que teriam sofrido seus saqueadores pegos em flagrante: de acordo com a egiptologia, os criminosos egípcios geralmente eram privados de seus narizes e orelhas (quando as centenas de açoites não bastavam) e em casos mais graves eram empalados em público sobre estacas afiadas de madeira (uma rudimentar variante da pena por crucificação dos rudes romanos). Desestimulante.

    Da mesma forma como no caso dos escaravelhos sagrados, os sacerdotes egípcios utilizaram-se também dos chamados Ushabtis como uma espécie de “gaiola”, ou “arapuca” mística, mas nesse caso a idéia era outra. Os Ushabtis tratavam-se de pequenos bonecos de cerâmica (cinco ou seis polegadas, em média) destinados a aprisionar os Kas de os escravos e demais funcionários reais destinados a servi-lo por toda a eternidade. Uma espécie de “fantoche do além”. Algo parecido com os Golens da tradição judaica, ou dos “homúnculos” da Alquimia obscura. Sei pouco sobre os Gárgulas, mas acho que pode ser que tenha algo semelhante em a natureza deles com a das esfinges, também. Ushabti significa “respondente”. O costume de se preparar a pós-vida do “faraó” em questão com serviçais á disposição chegou a tais proporções que alguns deles chegaram a ordenar que enterrassem junto a eles não mais apenas os bonecos de cerâmicas representativos: A história mostra que no Sudão um egípcio levou consigo para o “outro lado” a mais de cem “respondentes” de carne e osso. Se eles foram de livre e espontânea vontade, digo-lhe que isso é muito, muito pouco provável. Principalmente lembrando-se dos costumes e da índole de parte da antiga elite egípcia. Para encerrar o assunto dos Ushabtis colocarei como exemplo uma inscrição encontrada em um desses pequenos bonecos (que, por sinal, levava em suas costas um instrumento agrícola): “Ó Ushabti, se o nome de... (nome do defunto) for designado para cultivar a terra ou acarrear areia, fala em seu lugar e grita: Olha! Eu estou aqui! Eu o farei!”.
Os Anathemas, por sua vez, tratavam-se dos famosos “jarros vermelhos” da bruxaria egípcia. Se buscarmos paralelos para usar de comparação aos tais Anathemas, pegarei como o melhor exemplo os - mais famosos ainda - bonecos do Voodoo africano. Os Anathemas tratavam-se de fetiches místicos destinados a destruir o alvo em questão. Depois de consagrado com seus respectivos rituais e inscrições mágicas (incluindo o nome da vítima – ou vítimas), os Anathemas eram, então, destruídos. Simples magia-negra simpática.

    E, finalmente, chegamos ao nosso tema principal. Falemos sobre a Esfinge.
Famosa por haver sido utilizada por Khufu (personagem mais conhecido pelo nome grego de “Quéops”) como uma das muitas formas de intimidar a quem quisesse saquear sua gigantesca pirâmide (a maior já construída pela raça humana) e como uma das personagens secundárias de uma tragédia de Sófocles, a esfinge sempre fora um talismã muito utilizado pelo povo da Antiguidade. Principalmente pelos gregos e egípcios. Sua constituição antropomórfica representa todos os elementos - terra, ar, água e fogo - da seguinte maneira; leão para fogo, águia (ou íbis?) para ar, homem (ou bode) para terra, e peixe para água (as escamas em seu busto – na famosa esfinge de Gisé - já não são mais visíveis pelo desgaste do tempo). Da mesma forma como os Kas guardiões, a função da Esfinge é a de servir de sentinela imaterial. Ao mesmo tempo, sua estética serve também como evidência de que seu “protegido” se trata de um iniciado, ou seja, de um homem que galgou os degraus da iniciação pitagórica que no Egito fora representado pelos Sacerdotes da Lua. A serenidade da postura da esfinge demonstra as três qualidades divinas: Hu (autoridade, poder), Sai (percepção, sagacidade, sabedoria) e a maior de todas, Ma`at (justiça, ordem, harmonia, verdade e equilíbrio). Para os antigos egípcios, a única forma de o ser humano encontrar a virtude (também chamada por eles de Ank, ou “glória”, “vitória”, “vida”, e representada pelo conhecidíssimo símbolo da cruz ansata) era através de uma justiça parcial. Essa justiça era parcial, por ser ela priorizada em torno do bem e do justo. Muito diferente da “nossa” justiça, que é de tal forma imparcial que chega a ser representada por uma mulher de olhos vendados. Nessa justiça parcial egípcia, jamais um assassino serial ou um estuprador confessos seriam defendidos, como em nossa sociedade moderna normalmente o faria um advogado criminal qualquer. O homem moderno teria muito a aprender se tentasse entender o significado da palavra Ma`at e sua implicação filosófica cotidiana. Penso eu que o coração de muitos homens modernos muito dificilmente seria mais leve do que a pena de Ma`at, quando colocados sob a balança de Thoth.

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esfinge. [ Do gr. sphigx, gós, pelo lat. sphinge.] S. f. Mit. Guardião mágico em forma de um leão alado, geralmente com a cabeça de um homem, cuja suposta única chance de sobrevivência que dava a quem se aproximava de seus domínios era que decifrasse qualquer de seus enigmas.

justiça. [ Do lat. justitia.] S. f. A faculdade de julgar segundo o direito e melhor consciência.

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