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domingo, 31 de agosto de 2014

CONHEÇA O WUSHU, MAIS CONHECIDO NO OCIDENTE COMO "KUNG FU"


Há incontáveis anos os homens combatem violentamente entre si. Lutam por territórios, lutam por ouro, e –individualmente – lutam por sua honra, por sua família, e por sua mulher. Muito provavelmente, os homens lutam desde que foram criados. Provavelmente esta tenha sido uma de suas primeiras ações. E a primeira forma de luta, indubitavelmente, fora o combate com as mãos limpas. O combate nu, sem armas.



     Em quase toda a parte do sudeste do Oriente encontramos alguma forma específica de arte-marcial; o Vietnã tem seu Qwan Ki Do, a Coréia lutas como Haidong Gumdo, o Tangsudo e o Taekwondo, na Tailândia temos o Lerdrit, o Silat Pattani, o Muay Boran e o Muay Thai, mas ninguém poderá discordar que nenhuma outra civilização desenvolveu a luta como uma forma de arte tão intrincada e abrangente assim como o fizeram os chineses com seu Wushu. Durante milhares de anos a fio.



     Para o lutador chinês - ou qualquer outra pessoa que por ventura vier a praticar o venerável Wushu - lutar não é simplesmente atacar ou se defender a esmo. A única forma de se vencer a um inimigo maior e/ou mais forte será sendo mais ágil e/ou utilizando-se de golpes inesperados, complexos e eficazes. Golpes perfeitos. Através de um treinamento constante e disciplinado qualquer homem pode se tornar em um oponente imbatível para um ser humano comum, e apenas ser ameaçado por algum outro que porventura também tiver trilhado a mesma estrada do aperfeiçoamento marcial.



     Em nosso cotidiano não precisamos procurar muito para encontrar em qualquer cidade ou vilarejo a homens de índole violenta que parecem sempre estar procurando qualquer tipo de confusão. Estranhamente, esses homens parecem sentir prazer em causar prejuízos ao próximo, em agredir as pessoas pacíficas como se o mundo inteiro lhes devesse algo. São os ditos “marginais”, “bandidos”, pessoas más que não sentem qualquer empatia pelo sofrimento alheio e estão sempre dispostas a roubar, agredir, e até mesmo matar.



     Mui entretanto, por mais violentas e perigosas que essas pessoas possam parecer á primeira vista (e realmente o são para as pessoas comuns), quando desarmadas elas não representam ameaça significativa para um verdadeiro praticante de artes marciais. E, em alguns casos, até mesmo armadas. Presenciar uma luta entre um bandido comum e um praticante talentoso de wushu é uma cena humilhante e injusta, como a cena de um relez cão raivoso vadio a enfrentar um tigre.



     O praticante da arte-marcial terá sempre três opções, uma vez que o combate for inevitável: a primeira delas é forçar a desistência da luta por parte do agressor através da dor. Para isso ele usará de chaves de imobilizações (como as “Chin Na”, que são particularmente dolorosas), ou através de precisos golpes contusivos como murros, chutes ou tapas (por mais estranho que possa parecer para uma pessoa comum, um simples “tapa” aplicado corretamente por um lutador de Wushu pode nocautear uma pessoa). A segunda opção do lutador será quebrar os ossos e/ou deslocar as articulações (dedos, pulsos, braços, ou pernas). A terceira e última opção seria castigar o oponente com um ataque direto e fulminante em seus centros vitais. Não por acaso, uma das técnicas para esse fim é conhecido na china como “a porta que não deve ser aberta” (voltaremos a esse assunto mais adiante). Em suma, apenas em caso de vida ou morte.    




     Aparte a violência, o Wushu também pode ser visto como uma linda dança-marcial. Que outra “cultura da guerra” baseou seus ataques e defesas em movimentos de específicos animais, e até mesmo insetos como um singelo Louva-Deus?



     Desde a minha mais tenra infância eu, que escrevo estas linhas, sou um grande admirador d`esta surpreendente arte. Lembro-me perfeitamente que desde que já possuía quatro, ou cinco anos de idade, a arte marcial que eu conhecia pelo nome de “kung-fu” sempre me roubou quase toda a atenção e os meus sonhos de criança. E muitos anos antes de finalmente iniciar meu treinamento e colocar meu corpo em movimento de acordo com tal filosofia, estudei a fundo a história do Wushu e suas mais variadas técnicas através de dezenas de livros em português, espanhol (minha língua materna) e inglês. Foi com aproximadamente onze, ou doze anos, aproximadamente, mesmo período em que iniciei meu treinamento com Lian Jien Gun - a princípio de forma autodidata - com filmes, livros e vídeo-aula, depois sob a tutela de um primo distante, que em pouco tempo me abriu um leque enorme de novas possibilidades. Possibilidades que eu jamais havia imaginado. Foi com ele que aprendi que a beleza do Wushu nunca deverá fazer esquecermo-nos de sua função implícita, ou seja, que ele na verdade é uma forma de combate. Seus movimentos podem ser belos, mas, antes de tudo, devem ser funcionais. Com funcionais, quero dizer perigosos.




     Meu treinamento formal em escolas de artes marciais começou muito depois de esses meus estudos teóricos autodidatas. Eu mantive certo receio de finalmente partir para a prática por que já tinha plena ciência do quão complexo e profundo eram todas as bases filosóficas e práticas... Era-me vertiginoso vislumbrar todo aquele imenso caminho ainda a ser percorrido, e muito mais ainda, quase mesmo desanimador. Parecia tarefa impossível um ocidental como eu tornar-se um verdadeiro artista marcial. Ainda hoje me parece.  



     Por capricho do destino, meus primeiros Sifus foram totalmente opostos. O primeiro deles era uma pessoa cativante e bem-humorada que sempre condenou a violência física, e jamais admitiu que sua escola fosse vinculada a algum tipo de valentão. Em sua escola aprendi o Wushu Moderno. Ali nunca partimos para qualquer tipo de combate, todos os movimentos aprendidos (Taolus) eram praticados com leveza, e com fixação ferrenha em sua exatidão. Em essa primeira escola eu aprendi a simetria da arte. Quem me iniciou foram duas garotas que colecionavam medalhas de ouro (duas alunas veteranas que se tornaram instrutoras, fato bastante comum em as escolas de artes-marciais), e sinto-me confortável em afirmar que aprendi minhas bases modernas com duas belas mulheres.




     Na segunda escola eu aprendi a lutar. Em esta escola (que era de Wushu Tradicional) nosso professor demonstrava claramente o seu grande repúdio pelo Wushu Moderno, estereotipando-o como “afeminado e pouco-funcional”, e sempre fazia questão de demonstrar as aplicações reais de todos os Taolus, mostrando-nos como cada movimento de mãos e punhos sempre tinham uma função real e - na maioria dos casos em se tratando do Fan Tsi, o estilo tradicional que treinávamos - mortal. Ele sempre foi uma pessoa educada e civilizada, mas - diferente de meu primeiro professor – ele era duro e severo. Suas mãos eram pesadas como torniquetes, e até mesmo sua risada parecia demonstrar certa agressividade. Sua presença sempre me passou uma sensação que eu poderia facilmente expressar como se fosse a de estar-se perto de uma bomba em repouso pronta para explodir. Muito estranhamente, quando perguntado a ele sobre mim, soube que ele me descreveu como “um garoto muito revoltado”. Não sei se esta minha descrição de meus dois primeiros Sifus foi condizente, mas eu concluo afirmando que - apesar de sua seriedade e tenacidade - o segundo professor sempre foi uma pessoa bastante razoável, compreensiva, e até mesmo generosa. Mas é que me marcou bastante a diferença cabal entre os dois, um com sua suavidade, e o outro com seu vigor, e achei bastante interessante pra mim e para o leitor d`esses escritos compará-los, e ver como os dois estão corretos em suas verdades individuais. É exatamente isso. Nenhum dos dois está errado.



Acaba de vir-me á mente a imagem do Ying Yang, afinal de contas, como disse mui sabiamente Confucio,



Quando na companhia de dois homens, sou fadado a aprender com eles.
As virtudes do primeiro, eu as imito:
Os defeitos do segundo, eu os corrijo em mim mesmo.




     E, para encerrar este breve prólogo, concluo dividindo generosamente com os meus leitores os principais ensinamentos de cada um d`eles, aspectos sempre enfatizados pelos dois em suas respectivas aulas, e que - ao meu ver - são realmente fundamentais para o Wushu:



   - Primeiro de tudo, a base do cavalo (Ma bu) é o princípio, o meio e o fim do Wushu. Até mesmo um faixa-preta precisa manter constantemente sua base/cavalo. É ela que fortalecerá e preparará os músculos de suas pernas para os saltos. Enquanto que em a escola moderna sua base é alta - com a ante perna em um ângulo perfeito de noventa graus - na escola tradicional ela será baixa - com a ante perna quase em quarenta e cinco graus.

  - Saiba administrar sua energia e fôlego. Em os Taolus é fundamental saber a hora certa de relaxar os músculos e respirar, caso contrário será impossível finalizá-los com a precisão e força necessárias. Lembre-se de que eles foram desenvolvidos durante milhares de anos, e cada pausa tem sua finalidade.




Deixai que as rodas percorram os velhos sulcos já traçados
Tao Te Ching




  - Atente aos mínimos detalhes. É bastante comum de lutadores inexperientes (e até mesmo alguns “veteranos”) pecarem em detalhes como não fechar corretamente os punhos (com os polegares firmemente apoiados em os dois primeiros dedos) e não esticar totalmente os braços. Muitos praticantes priorizam a velocidade e se esquecem de que os movimentos devem ser bem definidos. Já vi muitos faixa-amarelas (e até mesmo vermelhas) realizando Taolus com movimentos imprecisos e feios. Principalmente entre os Ocidentais. Isso geralmente acontece por o aluno não ter desenvolvido satisfatoriamente cada movimento em separado. Em longo prazo, isso acarretará inevitavelmente vícios difíceis de serem corrigidos.



 -  Presta atenção redobrada aos seus ombros e, principalmente, à tua coluna vertebral. Os ombros devem estar baixos e relaxados. A coluna vertebral deve estar sempre reta.
     Como diziam os chineses a milhares de anos em suas Odes, o estudante deve sempre se aprimorar esmeradamente...





 “... como se fosse cortado como osso, polido como chifre...
E esculpido como jade.”






E isso é tudo.





Este texto é um trecho do livro de Herácides Gimenez ("Saides Lamarca") intitulado "A Dança do Tigre Branco"




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