Há incontáveis anos os
homens combatem violentamente entre si. Lutam por territórios, lutam por ouro,
e –individualmente – lutam por sua honra, por sua família, e por sua mulher.
Muito provavelmente, os homens lutam desde que foram criados. Provavelmente
esta tenha sido uma de suas primeiras ações. E a primeira forma de luta,
indubitavelmente, fora o combate com as mãos limpas. O combate nu, sem armas.
Em quase toda a parte do sudeste do
Oriente encontramos alguma forma específica de arte-marcial; o Vietnã tem seu Qwan Ki Do, a Coréia lutas como Haidong Gumdo, o Tangsudo e o Taekwondo,
na Tailândia temos o Lerdrit, o Silat Pattani, o Muay Boran e o Muay Thai,
mas ninguém poderá discordar que nenhuma outra civilização desenvolveu a luta
como uma forma de arte tão intrincada e abrangente assim como o fizeram os
chineses com seu Wushu. Durante
milhares de anos a fio.
Para o lutador chinês - ou qualquer outra
pessoa que por ventura vier a praticar o venerável Wushu - lutar não é
simplesmente atacar ou se defender a esmo. A única forma de se vencer a um
inimigo maior e/ou mais forte será sendo mais ágil e/ou utilizando-se de golpes
inesperados, complexos e eficazes. Golpes perfeitos. Através de um treinamento
constante e disciplinado qualquer homem pode se tornar em um oponente imbatível
para um ser humano comum, e apenas ser ameaçado por algum outro que porventura
também tiver trilhado a mesma estrada do aperfeiçoamento marcial.
Em nosso cotidiano não precisamos procurar
muito para encontrar em qualquer cidade ou vilarejo a homens de índole violenta
que parecem sempre estar procurando qualquer tipo de confusão. Estranhamente,
esses homens parecem sentir prazer em causar prejuízos ao próximo, em agredir
as pessoas pacíficas como se o mundo inteiro lhes devesse algo. São os ditos
“marginais”, “bandidos”, pessoas más que não sentem qualquer empatia pelo
sofrimento alheio e estão sempre dispostas a roubar, agredir, e até mesmo
matar.
Mui entretanto, por mais violentas e
perigosas que essas pessoas possam parecer á primeira vista (e realmente o são
para as pessoas comuns), quando desarmadas elas não representam ameaça
significativa para um verdadeiro praticante de artes marciais. E, em alguns
casos, até mesmo armadas. Presenciar uma luta entre um bandido comum e um
praticante talentoso de wushu é uma cena humilhante e injusta, como a cena de
um relez cão raivoso vadio a enfrentar um tigre.
O praticante da arte-marcial terá sempre
três opções, uma vez que o combate for inevitável: a primeira delas é forçar a
desistência da luta por parte do agressor através da dor. Para isso ele usará
de chaves de imobilizações (como as “Chin
Na”, que são particularmente dolorosas), ou através de precisos golpes
contusivos como murros, chutes ou tapas (por mais estranho que possa parecer
para uma pessoa comum, um simples “tapa” aplicado corretamente por um lutador
de Wushu pode nocautear uma pessoa). A segunda opção do lutador será quebrar os
ossos e/ou deslocar as articulações (dedos, pulsos, braços, ou pernas). A
terceira e última opção seria castigar o oponente com um ataque direto e
fulminante em seus centros vitais. Não por acaso, uma das técnicas para esse
fim é conhecido na china como “a porta que não deve ser aberta” (voltaremos a
esse assunto mais adiante). Em suma, apenas em caso de vida ou morte.
Aparte a violência, o Wushu também pode
ser visto como uma linda dança-marcial. Que outra “cultura da guerra” baseou
seus ataques e defesas em movimentos de específicos animais, e até mesmo insetos
como um singelo Louva-Deus?
Desde a minha mais tenra infância eu, que
escrevo estas linhas, sou um grande admirador d`esta surpreendente arte.
Lembro-me perfeitamente que desde que já possuía quatro, ou cinco anos de
idade, a arte marcial que eu conhecia pelo nome de “kung-fu” sempre me roubou
quase toda a atenção e os meus sonhos de criança. E muitos anos antes de
finalmente iniciar meu treinamento e colocar meu corpo em movimento de acordo
com tal filosofia, estudei a fundo a história do Wushu e suas mais variadas
técnicas através de dezenas de livros em português, espanhol (minha língua
materna) e inglês. Foi com aproximadamente onze, ou doze anos, aproximadamente,
mesmo período em que iniciei meu treinamento com Lian Jien Gun - a princípio de
forma autodidata - com filmes, livros e vídeo-aula, depois sob a tutela de um
primo distante, que em pouco tempo me abriu um leque enorme de novas
possibilidades. Possibilidades que eu jamais havia imaginado. Foi com ele que
aprendi que a beleza do Wushu nunca deverá fazer esquecermo-nos de sua função
implícita, ou seja, que ele na verdade é uma forma de combate. Seus movimentos
podem ser belos, mas, antes de tudo, devem ser funcionais. Com funcionais,
quero dizer perigosos.
Meu treinamento formal em escolas de artes
marciais começou muito depois de esses meus estudos teóricos autodidatas. Eu
mantive certo receio de finalmente partir para a prática por que já tinha plena
ciência do quão complexo e profundo eram todas as bases filosóficas e
práticas... Era-me vertiginoso vislumbrar todo aquele imenso caminho ainda a
ser percorrido, e muito mais ainda, quase mesmo desanimador. Parecia tarefa
impossível um ocidental como eu tornar-se um verdadeiro artista marcial. Ainda
hoje me parece.
Por capricho do destino, meus primeiros
Sifus foram totalmente opostos. O primeiro deles era uma pessoa cativante e
bem-humorada que sempre condenou a violência física, e jamais admitiu que sua
escola fosse vinculada a algum tipo de valentão. Em sua escola aprendi o Wushu
Moderno. Ali nunca partimos para qualquer tipo de combate, todos os movimentos
aprendidos (Taolus) eram praticados com leveza, e com fixação ferrenha em sua
exatidão. Em essa primeira escola eu aprendi a simetria da arte. Quem me
iniciou foram duas garotas que colecionavam medalhas de ouro (duas alunas
veteranas que se tornaram instrutoras, fato bastante comum em as escolas de artes-marciais),
e sinto-me confortável em afirmar que aprendi minhas bases modernas com duas
belas mulheres.
Na segunda escola eu aprendi a lutar. Em
esta escola (que era de Wushu Tradicional) nosso professor demonstrava
claramente o seu grande repúdio pelo Wushu Moderno, estereotipando-o como
“afeminado e pouco-funcional”, e sempre fazia questão de demonstrar as
aplicações reais de todos os Taolus, mostrando-nos como cada movimento de mãos
e punhos sempre tinham uma função real e - na maioria dos casos em se tratando
do Fan Tsi, o estilo tradicional que treinávamos - mortal. Ele sempre foi uma
pessoa educada e civilizada, mas - diferente de meu primeiro professor – ele
era duro e severo. Suas mãos eram pesadas como torniquetes, e até mesmo sua
risada parecia demonstrar certa agressividade. Sua presença sempre me passou
uma sensação que eu poderia facilmente expressar como se fosse a de estar-se
perto de uma bomba em repouso pronta para explodir. Muito estranhamente, quando
perguntado a ele sobre mim, soube que ele me descreveu como “um garoto muito
revoltado”. Não sei se esta minha descrição de meus dois primeiros Sifus foi
condizente, mas eu concluo afirmando que - apesar de sua seriedade e tenacidade
- o segundo professor sempre foi uma pessoa bastante razoável, compreensiva, e
até mesmo generosa. Mas é que me marcou bastante a diferença cabal entre os
dois, um com sua suavidade, e o outro com seu vigor, e achei bastante
interessante pra mim e para o leitor d`esses escritos compará-los, e ver como
os dois estão corretos em suas verdades individuais. É exatamente isso. Nenhum
dos dois está errado.
Acaba
de vir-me á mente a imagem do Ying Yang, afinal de contas, como disse mui
sabiamente Confucio,
“Quando na companhia de dois homens, sou
fadado a aprender com eles.
As
virtudes do primeiro, eu as imito:
Os
defeitos do segundo, eu os corrijo em mim mesmo.”
E, para encerrar este breve prólogo,
concluo dividindo generosamente com os meus leitores os principais ensinamentos
de cada um d`eles, aspectos sempre enfatizados pelos dois em suas respectivas
aulas, e que - ao meu ver - são realmente fundamentais para o Wushu:
- Primeiro de tudo, a base do cavalo (Ma bu)
é o princípio, o meio e o fim do Wushu. Até mesmo um faixa-preta precisa manter
constantemente sua base/cavalo. É ela que fortalecerá e preparará os músculos
de suas pernas para os saltos. Enquanto que em a escola moderna sua base é alta
- com a ante perna em um ângulo perfeito de noventa graus - na escola
tradicional ela será baixa - com a ante perna quase em quarenta e cinco graus.
- Saiba administrar sua energia e fôlego. Em
os Taolus é fundamental saber a hora certa de relaxar os músculos e respirar,
caso contrário será impossível finalizá-los com a precisão e força necessárias.
Lembre-se de que eles foram desenvolvidos durante milhares de anos, e cada
pausa tem sua finalidade.
“Deixai que as rodas percorram os velhos
sulcos já traçados”
Tao
Te Ching
- Atente aos mínimos detalhes. É bastante
comum de lutadores inexperientes (e até mesmo alguns “veteranos”) pecarem em
detalhes como não fechar corretamente os punhos (com os polegares firmemente
apoiados em os dois primeiros dedos) e não esticar totalmente os braços. Muitos
praticantes priorizam a velocidade e se esquecem de que os movimentos devem ser
bem definidos. Já vi muitos faixa-amarelas (e até mesmo vermelhas) realizando
Taolus com movimentos imprecisos e feios. Principalmente entre os Ocidentais.
Isso geralmente acontece por o aluno não ter desenvolvido satisfatoriamente
cada movimento em separado. Em longo prazo, isso acarretará inevitavelmente
vícios difíceis de serem corrigidos.
-
Presta atenção redobrada aos seus ombros e, principalmente, à tua coluna
vertebral. Os ombros devem estar baixos e relaxados. A coluna vertebral deve
estar sempre reta.
Como diziam os chineses a milhares de anos
em suas Odes, o estudante deve sempre
se aprimorar esmeradamente...
“... como se fosse cortado como osso, polido
como chifre...
E
esculpido como jade.”
E
isso é tudo.
Este texto é um trecho do livro de Herácides Gimenez ("Saides Lamarca") intitulado "A Dança do Tigre Branco"
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