Para melhor
compreendermos as diferentes técnicas usadas no canto usaremos como exemplos
cantores de rock, visto que a enorme abrangência d`esse estilo musical em
termos de influências de outras vertentes nos suprirá a contento de qualquer
base a que venhamos necessitar.
E como primeiro
exemplo citaremos a um cantor brasileiro muito conhecido do grande público e
que nos servirá como um importante referencial, visto que o seu trabalho nos
apresenta dois diferentes aspectos importantes relativos ao nosso assunto.
Começaremos com o cantor baiano Raul Seixas.
Analisando a sua voz
falada, qualquer professor de canto diria que Raul se enquadrava na
classificação vocal erudita como um “tenor”,
isto é, a voz mais aguda d`entre as masculinas, visto que geralmente os tenores
apresentam uma voz falada “pequena”, quase anasalada, e seus graves são
bastante limitados. Entretanto, Raul (como Chico Buarque, e outras centenas
de outros artistas) nunca desenvolveu o seu canto de maneira profissional e
sistemática por sempre acreditar que “não era cantor, apenas usava de sua
música para dizer o que pensa”. Ledo engano. Todas as vozes são feitas para o
canto, nenhuma voz é boa ou ruim, todas elas podem ser moldadas e “consertadas”
com estudo e disciplina.
Na canção “Eu também
vou reclamar” Raul usa de uma técnica vocal básica utilizada principalmente
pelos locutores de rádio, que é a simples “impostação de voz”. Como
trata-se de uma canção explicitamente “Bob Diliana”, ele canta como se
estivesse apenas narrando uma história (note como a melodia vocal não apresenta
muitos floreios de notas, é quase
como se ele estivesse falando normalmente). Na “impostação” apenas usa-se de
uma ressonância bastante “abdominal”,
e uma emissão vocal firme como no “belting”.
As palavras são pronunciadas de forma bastante aberta, com muita expressão
facial, para obtermos brilho, clareza vocal.
Tomemos, agora, outro exemplo em que ele
usa uma abordagem totalmente oposta: a música “Maluco beleza”.
Surpreendentemente, nela ouvimos a um Raul Seixas lírico, talvez essa música
seja o seu ponto mais alto como cantor, visto que trata-se de uma melodia
complexa e seu registro de estúdio (disco) apresenta uma qualidade de canto sofisticada
ao nível profissional (aparentemente, graças aos recursos do “overdub”,
visto que ele mesmo nos assegurava de que não treinava técnicas vocais, e na
época ainda não existia o “Pro Tools” com seus recursos de “auto-tuner”).
Nela, Raul usa a técnica de head-voice, conhecida no Brasil
como “voz de cabeça”: Note que os agudos são atingidos sem o aumento da
dinâmica/intensidade da voz, Raul canta com a leveza de um cantor de bel-canto, usando muitos “glissandos”
(principalmente na parte em que ele canta “apren-dendo-a-ser-louco”) e sustentações de voz com vibrato de diafragma. Para se cantar a
essa canção, deve-se treiná-la com mínima intensidade, e sem recorrer a falsetes nas partes mais
agudas da melodia da estrofe ou, melhor dizendo,
sem quebra de voz. Mas atenção, também
é muito interessante notarmos que nesta mesma canção Raul deixa de usar a voz
de cabeça para usar o belting quando começam os refrões. E, como referencial,
sugiro ao estudante analisar, também, á (muito bela) canção “A hora do trem
passar”, onde Raul também canta quase da mesma forma. São dois exemplos muito
bons para nos acostumarmos a cantar com a voz de cabeça.
[Mas atenção: Essa
tonalidade (C, Do) é para tenores ou barítonos avançados, não cante
músicas que não forem de sua tessitura vocal, se for o caso transporte a
tonalidade para cima, ou para baixo.]
Passando para outro
artista, usaremos como exemplo ao trabalho de Renato Russo. Renato era um
barítono, ou seja, a sua voz era média. Isso significa que ele podia transitar
tanto pelas notas graves, como pelas agudas... Mas sem poder chegar aos
extremos de nenhuma delas. Entretanto, Renato gostava muito de abusar de seus
agudos para intensificar suas interpretações, e acompanhar á dinâmica do
conjunto de rock que o acompanhava (a Legião Urbana), e então ele
recorria muitas vezes ao “belting” para dar mais peso. Fica mais fácil
percebermos o quanto Renato usava de impostação torácica (“voz de peito”)
principalmente quando reparamos nas partes mais graves de suas canções, quando
ele cantava como o “Ian Curtis”. E, quando ele subia o tom (como em “Fábrica”
e “Daniel na cova dos leões”, só pra usarmos dois exemplos) era
inevitável: belting.
Para um bom belting devemos “abrir” a região
do pescoço sem tencionarmos e nunca forçar a musculatura, o que poderia gerar
calosidades vocais irreversíveis. Uma boa canção da Legião Urbana para se
treinar belting é a “Que país é este”: Tente alcançar a linha melódica do refrão principal
com a voz clara e forte, mas de forma confortável, sem gritar. Se você estiver
achando dificultoso, forçoso, alcançar ao tom, você não está cantando em
belting, você está apenas gritando.
Agora vamos aos
cantores internacionais. Inevitavelmente iremos começar por quem eu acredito
seja o maior cantor que já fez parte de um conjunto de rock (muito embora não
seja o meu preferido, apenas analiso-o neste momento por seu domínio de
técnica) que é o vocalista da banda Queen, Freddie Mercury. Seu head-voice em “Old
fashioned lover boy”, por exemplo, é tão alto que nos chega a parecer o
canto de uma mulher. E seu domínio de belting em “I want to break free”
eu só vi reproduzido satisfatoriamente por cantores “cover” excelentes. O
próprio Freddie deixava um pouco a desejar nos registros ao vivo dessa canção
pelos excessos cometidos por ele, como beber cerveja gelada durante a
apresentação, e seus famosos melismas que ele improvisava
para cantar com o público e que, com certeza, aceleravam em muito a fadiga de suas cordas
vocais. De qualquer forma, apenas com a audição de seus registros ao vivo de “Somebody
to Love” (onde ele chega a nos mostrar melismas de quatro notas por segundo)
já é o bastante para se comprovar a sua surpreendente perícia vocal.
Bruce Dickinson (vocalista da banda Iron Maiden, e quase sempre
citado como referência quando o assunto é “cantar rock”) nos apresenta uma
técnica vocal bastante polêmica, visto que ela é muitas vezes confundida por
“professores de canto” com o head-voice, ou com o belting. Entretanto, fica
óbvio para o estudante atento percebermos que não se trata nem de um, e nem do
outro, mas de um registro vocal misto, onde sua base
característica são os agudos muito famosos dos
cantores de óperas. Muitos cursos de canto abordam o tema, mas apenas com as
descrições fisiológicas de “laringes e pregas vocais” (talvez disfarçando o
próprio indomínio do “professor” sobre a técnica), e quase nenhum estudante irá
conseguir compreender – e pôr em prática - o assunto apenas através de tais
descrições. A forma mais fácil e aproximada de mostrarmos onde necessariamente
essa emissão vocal se inicia é tomarmos como exemplo (um tanto estranho,
concordo, mas eficaz) o nosso típico “bocejo”: nesse “uaaa” gerado, repare onde
a voz é colocada, e compare com um “uaaa” falado normalmente. É exatamente aí
que a voz deve ser colocada para o correto apoio dos agudos!
Na história do rock
tivemos alguns cantores que saíram dos parâmetros convencionais e trouxeram
inovações, muito embora algumas d`essas “inovações” (apesar de terem
indubitavelmente, imortalizado aos intérpretes em registros de estúdio
formidáveis) acabaram sendo tão extremas, que danificaram irreversivelmente as
suas cordas vocais, e em muitos casos exigindo intervenções cirúrgicas e - até
mesmo - encerrando a carreira do artista. Neste assunto temos exemplos
que vão desde Axl Rose, Robert Plant e Roger Waters (respectivamente,
vocalistas do Guns`n Roses, Led Zeppelin e Pink Floyd), que são os
exemplos mais duros do quanto os excessos podem ser prejudiciais, visto que o
timbre vocal dos três fora inevitavelmente deformado, e para comprovarmos isso
basta escutarmos aos registros mais recentes de seus trabalhos. Claro que, para
se terem imortalizado com suas bandas, tal sacrifício talvez tenha sido
voluntário (e satisfatório para eles) esta é uma questão bastante pessoal (eu,
particularmente, acredito que tais sacrifícios foram válidos, se foram
conscientes), mas basta buscar para encontrarmos outros exemplos de artistas
que alcançaram o mesmo estrelato, mas sem pagar o preço com suas vozes.
Os melhores exemplos
de cantores que souberam muito bem usar de seus extremos vocais sem danos ao
trato vocal, mesmo alcançando tons surpreendentemente altos que qualquer
professor de canto desaconselharia julgando-os extremamente danosos, foram Paul Stanley (do grupo Kiss) Steve Tyler (do grupo Aerosmith). Basta compararmos
ao registro de estúdio original de “Rock bottom” com sua versão acústica
ao vivo gravada décadas depois, para comprovarmos (com grata surpresa) de que o
alcance e domínio vocais de Stanley só fizeram por melhorar. E, nesse mesmo
concerto ao vivo (Unplugged MTV), Stanley canta “I still loving you”
com uma técnica de vibrato laríngeo impecável, senão
inédita na história do rock mundial.
Que dizer, então, de nosso velho Steve
Tyler? Na década de noventa o Aerosmith teve uma feroz alavancada em sua
carreira, embalada em canções de claras intenções pop, mas a voz de Steve
estava com um alcance vocal tão eficaz que fez com que os adolescentes se
enganassem pensando se tratar o Aerosmith de uma banda “nova”... Na verdade, o
Aerosmith já existia há décadas atrás!
Essas são as duas
principais provas vivas de que não é preciso estragar a voz para se fazer
coisas surpreendentes. Somente precisamos de disciplina e – principalmente –
muito treino e repetição. Esse é o detalhe que diferencia o virtuose, de um artista
medíocre: a disciplina militar de treinos diários.
Seguem abaixo algumas
canções selecionadas por mim para treinos autodidatas
Para treinos com head
voice (tenores, ou barítonos avançados):
Babe, I love your way (Peter Frampton)
Kiss from a rose (Seal)
It ain`t over till it`s over (Lenny Kravitz)
Blue (Geoffrey Williams)
How come, how long (Babeface)
Para treinos com belting
Don`t go away (Oasis)
Travelling band (Creedence Clearwater Revival)
Walk, idiot, walk (The Hives)
Sweet Leaf (Black
Sabbath)
Para treino com
melismas
Edie (The Cult)
Sanssouci (Rufus Wainwright)
Your Savior (Temple of the dog)
Para treinos com voz
de peito (graves)
We could be so good together (The doors)
Your latest trick (Dire Straits)
Considerações finais
Lembre-se, só a prática constante levará a um aumento gradativo de suas
capacidades, mas muito cuidado com os excessos.
Deve-se, também,
fazer-se constantemente uma auto-análise para a correção de vícios. Uma boa
dica é sempre gravar seus registros, para depois ouvi-los com atenção.
Outro detalhe muito
importante: Nenhum cantor do mundo é capaz de cantar todas as músicas que ele
gosta. Muitas vezes nos deparamos com canções que - por mais que tentamos - não
se encaixa em nosso timbre vocal, e isso acontece até mesmo com canções de
artistas com o nosso mesmo naipe vocal. Isso ocorre porque as vozes possuem
características muito particulares e – da mesma forma como uma impressão
digital – únicas. Muitos artistas “cantam bem” músicas de outros cantores por
conseguirem sencilhamente imitar ao timbre deles, mas isso é um erro comum.
O verdadeiro artista
nunca imitará a ninguém. Ele poderá cantar a mesma melodia, com a mesma letra,
mas a sua interpretação deverá ser sempre individual. Caso contrário, não será
“arte”, mas apenas uma imitação.
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6 comentários:
Ei Saides boa matéria, apenas uma correção, é Paul Stanley do Kiss
Também poderia ter citado Geddy Lee e Ney Matogrosso. No resto está de parabéns.
sim, é verdae, Layne era a voz do Alice in Chains, que erro vulgar!!! mas brigado pelo toque, e brigado principalmente pelo interesse em ler e comentar! fica com Deus!
Pelos meus parcos conhecimentos eu diria (com bastante cautela) que Geddy Lee utiliza head voice, e que Ney Matogrosso possui uma genÉtica impar que coloca seu timbre vocal proximo a classificações femininas... mas eu me esqueci tambem de uma de minhas vozes preferidas: o vocal da banda Yes!...
Bom, verdade, o Jon Anderson é o maior vocal do progressivo, e provavelmente do rock em geral.
Jon Anderson.....Glenn Hughes.....
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