Páginas

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O BRASILEIRO QUE NÃO LÊ LIVROS É UM SEMI-ANALFABETO

    Passei grande parte da minha vida lendo literatura européia. Na escola traumatizara-me com a literatura Brasileira e Portuguesa, graças ás intransigentes professoras que empurravam goela abaixo de seus alunos esses livros á força, obrigando-nos a lermos uma determinada obra, para depois passarmos por uma prova escrita. Peguei ódio de escritores brasileiros e portugueses (que passei a considerar pedantes e piegas), e apenas lia as sinopses das obras requisitadas. Cheguei a tirar notas máximas sem ao menos ter tocado nos livros. Na verdade, consegui gostar de apenas dois autores (que, aliás, nunca foram recomendados em minha escola por serem considerados “densos” e complexos demais): Guimarães Rosa e Clarice Lispector. E, alguns anos depois, descobri a bela e sensual literatura afro-baiana de Jorge Amado.

    Minha rebeldia pela escola não se resumia apenas aos livros requisitados: Sempre achei ridículo todo o currículo escolar. Para mim, Matemática deveria servir para ensinar um futuro cidadão a administrar suas próprias finanças e bens, e não para confundi-lo com equações complexas e fórmulas que nunca seriam usadas no cotidiano. Literatura deveria ser uma matéria que estimulasse o aluno a ler, e não despotamente obrigá-lo a ler gêneros incompatíveis com o seu gosto pessoal. O aluno deve ter o direito de escolher as obras que vai ler. Só assim o amor pela leitura pode se desenvolver. Cheguei a tal ponto de meu engajamento que joguei fora meus cadernos, e passei a freqüentar a escola apenas com folhas esparsas, uma caneta, e os livros que eu próprio escolhia. E como eu não falava com quase ninguém na classe (até a oitava série quase ninguém gostava de mim por eu ser um geek-freak, e eu mesmo colaborava para ser ignorado) os professores nem pareciam notar o meu descaso. Ou não se animavam a cutucar a onça.

    Ás vezes eu escolhia obras para ler com a intenção clara de provocar: Na aula de Literatura (que eu achava particularmente enfadonha) eu ignorava a professora e ficava lendo o “Manifesto do Partido Comunista”, ou se era algo de literatura, seria o “Processo”, ou o “Paraíso Perdido”. Quando chegava o dia de algum exame, emprestava na própria classe o caderno de algum nerd solícito e rapidamente lia seu conteúdo. Mas nunca tive um desempenho abaixo da média. Para mim, era o bastante. Preferi ocupar os espaços de minha mente com informações e conhecimentos que julguei mais apropriados, e não com “quedas de Constantinopla”, “equações de sétimo grau”, “orbitais moleculares” e “teoria de Arrhenius”.

    Estranhamente, a maioria dos professores parecia gostar de mim. Talvez porque sabiam que eu tinha uma boa capacidade intelectual. Eu, também, nunca cheguei a ridicularizá-los, ou a criticar abertamente as matérias e o currículo escolar. Sabia muito bem que quanto mais calado e quieto eu ficasse, mais me deixariam em paz. Alguns chegavam até a me deixar dormir em minha carteira sem me incomodar. E com alguns eu debatia com interesse e carinho. Eram os professores menos ortodoxos, de cabeça aberta, que sabiam que um bom diálogo sobre a vida real era muito mais importante do que copiar retóricas ocas intermináveis. É perfeitamente possível usar essas matérias escolares de uma forma prática e útil, mas para isso acontecer ela deve ser fundida com o presente, com o cotidiano do aluno-cidadão, e com o seu futuro. O currículo escolar deve ser peneirado, lapidado, da mesma forma como uma biblioteca também deveria ser.

    Na minha cidade a biblioteca local possui bons livros, mas está superlotada de obras medíocres e ruins... E não possui títulos que seriam essenciais. Como o espaço de qualquer biblioteca é limitado, é óbvio que ele deve ser bem aproveitado. Revistas de curiosidades mensais e livros ruins são ótimos para se reciclar.

    Como estou falando sobre esse assunto (que julgo importantíssimo) vou expor outras posições: Acredito que um dos motivos principais de uma biblioteca não ser um ambiente normalmente freqüentado pelos jovens seja (afora o trauma por literatura-brasileira que quase todos os alunos adquirem por serem forçados a lerem) pelo fato de que a biblioteca empresta ou aluga seus livros. Qualquer dono de empório de livros usados sabe a quantidade de livros que são furtados das bibliotecas para depois irem para a estante particular do “intelectual”, ou para serem usados como moeda-de-troca em sebos. Tanto que a maioria dos empórios que eu conheço não aceita livros que possuem o carimbo de bibliotecas (fair enough). Se a biblioteca não emprestasse seus livros, suas obras boas e raras não iriam mais desaparecer “misteriosamente” junto com o cidadão e a biblioteca voltaria a ser freqüentada pelos jovens, afinal, eles teriam que ficar lá dentro para lerem. Quem faz isso sabe que não há nada de desagradável nisso, e muito pelo contrário, acho que a biblioteca pode ser um dos lugares mais bem-freqüentados de qualquer cidade, principalmente em termos de civismo e cultura. Nem sei dizer quantas vezes eu fui para a biblioteca para emprestar algum livro e a obra (que eu sabia que estava lá) havia desaparecido. E geralmente são livros caros ou raros. Ou seja, em longo prazo todos os títulos de qualidade desaparecerão e só sobrarão refugos, livros baratos e superficiais. É triste. Hoje em dia até os empórios que vendem os livros já estão começando a escassear em termos de títulos raros e bons. Quem conhece sabe o quanto está começando a ficar difícil encontrar obras de Borges, Garcia Marques, Hesse, Rosa ou Lispector. É justamente por isso que eu passei a vida inteira tratando de estocá-los em minha própria prateleira, da mesma forma como um esquilo armazena nozes para o inverno.


{Nota do Autor: Bom, como aproveitei este espaço para falar sobre isto, usarei esta deixa para legar aos leitores desse meu primeiro livro (que estou escrevendo com imenso prazer, graças aos imensos incentivos que tive de pessoas que já leram aos protótipos) a minha lista de uma suposta “Biblioteca Essencial” com exatos setenta livros, e cada um deles escolhido a dedo por mim. Obviously, ela será influenciada pelo meu gosto pessoal, por isso, não julgo que todos devam se ater a ela e, muito pelo contrário, todos deveriam fazer a sua própria. Mas eu acho que já seria um bom começo aproveitarem-se das obras que gostarem desta  minha lista para fazerem a sua própria. Irei apenas colocar os títulos para não me demorar por demais}:


Demian; Sidarta; Lobo da estepe; O Castelo; O Processo; Dom Quixote; A Tempestade; O Estrangeiro; 1984; A Morte de Ivan Ilitch; A Ilha; O Paraíso Perdido; As Palavras; Doutor Fausto; Fausto; Relato de um Náufrago; Doze Contos Peregrinos; Cem Anos de Solidão; Satiricon; Os Irmãos Karamázovi; O Retrato de Dorian Gray; Retrato do Artista quando Jovem; Martín Fierro; Uma Temporada no Inferno; Odisséia; Mensagem; Assim Falou Zaratustra; O Anticristo; A Gaia Ciência; Discussão; Metamorfoses; Tao Te Ching; Imitação de Cristo; O Presente da Águia; O Fogo Interior; Sagarana; Manuelzão e Miguilim; Grande Sertão Veredas; Noites do Sertão; Nossa Senhora de Paris; A Paixão segundo GH; Laços de Família; Prometeu Acorrentado; Cândido; O Livro dos Sonhos; Ulisses; Sete anos no Tibet; Sonho de Uma Noite de Verão; História da Eternidade; Elogio da Sombra; Bhagavad Gita; Uma Breve História do Tempo; Deuses Americanos; A Voz do Fogo; Em Busca do Tempo Perdido; O Tambor; Admirável Mundo Novo; O Poder e a Glória; O Despertar dos Deuses; Os Demônios de Loudon; Uivo; A Morte de Artemio Cruz; Suave é a Noite; Dois Vivos e um Morto; Contos Romanos; Os Trabalhadores do Mar; Verdade Tropical; O Pagador de Promessas; O Morro dos Ventos Uivantes; O Tao da Física.



Senti num vislumbre tantas portas abertas,
Mas não sei em qual entrar...

E tantos livros me deram pistas desse caminho,
mas temo não voltar.

Nenhum comentário: