A sofrível vida de Oscar
“Enquanto você não tiver morte e gênese
será um turvo hóspede
do lado escuro”
J.W. v. Goethe
Oscar não era
apenas um rapaz comum como todos os outros de sua escola, ou de seu bairro.
Não, ele era bastante especial. Desde pequeno Oscar mostrou-se um garoto
extremamente precoce, adquirindo muito cedo o hábito pela leitura, impulsionado
por não sei que obsessão cega por adquirir cada vez mais conhecimentos. Quando
Oscar se tornou um adolescente, quase todas as pessoas já eram vistas por ele como estúpidas, e exatamente por isso começou a se tornar praticamente
impossível para ele estabelecer amizades sólidas e, principalmente,
relacionar-se com as garotas de sua idade. Na verdade Oscar era intratável até
mesmo com as pessoas mais velhas, mas isso não era mais culpa d`ele, pois
quando percebeu que estava ficando sozinho ele começou a esconder sabiamente
seus conhecimentos e aspirações a fim de tentar ingenuamente se adequar aos
parâmetros predominantes, mas as pessoas, apesar de estúpidas, facilmente
percebem até mesmo inconscientemente quando uma pessoa é por demais inteligente
e sagaz - mesmo ela se disfarçando de burra – e, muito rapidamente,
tratam de se afastar d`ela. E a verdade é que o mundo inteiro parece odiar aos
gênios, inclusive Oscar se lembra claramente de um filme que ele assistiu há
muito tempo em que o protagonista – irritado com os argumentos de um jovem
garoto que o convencia de que ele estava errado – simplesmente lhe disse
exatamente d`este jeito: “Ninguém gosta de espertinhos.” E é realmente isso.
Ninguém, mesmo, parece gostar de espertinhos.
E quando Oscar
tentava conquistar as mulheres? Pensando mostrar a elas o que ele tinha de
“melhor”, Oscar mostrava a elas que ele era um homem sábio, bondoso e gentil,
ou seja, apenas o que ele ingenuamente imaginou como sendo as características
perfeitas para um homem ter para cativar as mulheres. Ledo engano. Oscar sempre
era trocado por homens inferiores, em todos os sentidos. Perdia para os mais
feios que ele (sim, ele também era belo). Perdia para os ignorantes, e os
mal-educados. Perdia até mesmo para os porcos, homens desleixados que não
lavavam sequer os cabelos, e até mesmo tinham halitose. Oscar não conseguia
entender isso, e todas essas derrotas para os “perdedores” foi revoltando-o,
pouco a pouco, até que em um certo momento qualquer de sua vida ele já não era
mais um rapaz confiante de suas qualidades e orgulhoso de suas capacidades e,
sim, um homem amargo e rancoroso que começou a alimentar um desprezo tenaz pelo
mundo inteiro, por ser renegado por eles ao ostracismo sendo que, na verdade,
eles é que estavam errados chafurdando na ignorância e na mediocridade. Isso
não era justo. Então o mundo, para Oscar, virou uma terra de idiotas que
começou a ficar cada vez mais hostil, até o ponto em que ele definitivamente
passou a se sentir totalmente excluído d`ele. E, então, Oscar se tornou uma
pessoa má.
Não vou entrar em
detalhes minuciosos sobre os acontecimentos secundários de sua vida porque não
irá haver nenhum tão importante em particular (o inferno está nas pequenas
coisas), apenas darei parcos exemplos, como o fato de que até mesmo sua sorte
parecia conspirar contra ele mesmo. O próprio destino parecia rir-se dele.
Perdia ônibus, trens, aviões e reuniões por segundos de atrasos involuntários;
Nos consórcios, quase sempre ele era um dos últimos a serem sorteados; E que
dizer de concursos, então? Oscar invariavelmente perdia, e parecia muito pouco
importar a falta de aptidão e/ou competência de seus adversários.
Aparentemente, a única qualidade que parecia suficiente para qualquer um tomar
a frente de Oscar era ser inferior a ele. Entrevistas de emprego? Das piores
desilusões. Quanto mais qualidades ele demonstrasse, tanto mais desinteresse
parecia demonstrar seus entrevistadores. “Ninguém gosta de espertinhos”. Essa
era a frase maldita, para Oscar. A sua maldição.
Até que, em um
belo dia, Oscar decidiu o que parecia que não era apenas o que ele desejava,
mas sim, o mundo inteiro: Acabaria com a sua própria vida. Primeiro,
impulsionado pelo ódio, Oscar pensou em se matar, mas antes levando consigo
quantas pessoas odiosas ele pudesse se vingar. Pensou, primeiro, em comprar uma
arma e um estoque suficiente de munições e sair executando aos entrevistadores
que não lhe deram emprego por se sentirem inferiores a ele. Depois pensou em
colocar uma bala entre os olhos de cada imbecil que o venceu nas disputas
amorosas, e de preferência na frente das próprias mulheres. Apenas depois de
feito isso daria cabo de sua própria vida, não sem antes fazer bastante
estardalhaço em público, com direito á polícia, repórteres de televisão e tudo
o mais, para que todos testemunhassem o que o mundo fez a ele... Em quê o mundo
o transformou. Mas, enfim, depois de meditar um pouco, terminou por decidir
pelo simples e silencioso suicídio. Que se danem esses idiotas, a única coisa que
ele realmente queria era finalmente desaparecer do meio d`eles. De uma vez por
todas.
Chegado o
momento, Oscar colocou algumas balas no revólver (para o caso de a primeira
bala falhar), escreveu um “FODAM-SE” bem grande, mas bem grande mesmo, na
parede de sua sala, sentou-se em uma cadeira e, sem vacilar um segundo pra não
perder a coragem, apertou o gatilho. O estouro da arma entrou em seu ouvido
(junto com o projétil) como um gigantesco sino que badalasse dentro de sua
cabeça, tudo ficou branco por um instante, depois preto, seu outro ouvido
continuou ouvindo o zumbido causado pelo forte estampido por alguns segundos, e
ele caiu com estrondo ao chão, sentindo um líquido viscoso e quente descendo
pelo seu pescoço. Ficou, então, imóvel, com a indescritível certeza de que ele
estava morrendo. A arma havia caído um pouco afastada dele, embaixo da mesa da
sala, e ele estava de bruços. Mas ele não morria. E, acredite se quiser, ele
não sentia dor alguma.
Oscar abriu seus
olhos e viu que ainda enxergava, e na verdade a única coisa que lhe havia
acontecido com o disparo à queima-roupa que ele deu em sua própria cabeça era
um estranho adormecer de todo o lado de sua cabeça onde ele havia efetuado o
disparo, e nada mais. Levantou-se devagar, desconfiado e confuso, apalpou o
ferimento (que ainda parecia sangrar, mas continuava dormente) e pensou em ir
ao banheiro se lavar (estranho pensamento), mas quando ele põe-se de pé percebe
que não está mais sozinho: Sentado em uma poltrona de sua casa uma pessoa
desconhecida trajada de branco está, e parece calmamente aguardar que ele a
veja, e fale com ela. E, de fato, ele fala:
- O que aconteceu? – pergunta Oscar, em
choque.
- “O que aconteceu”? Você acaba de se
suicidar, meu caro.
- Mas porque eu não estou morto? –
pergunta, olhando para a grande quantidade de sangue que está em suas mãos.
- Porque você não estava vivo.
- Como assim?
- Você não estava vivo. É normal você não
se lembrar, mas você morreu há muito tempo atrás... Na verdade você nem ao
menos se chamava “Oscar” quando isso aconteceu. Você apenas não se lembra de
nada, e todo este tempo você imaginava que era vivo, que estava vivendo em um
mundo “normal”, digamos... Mas não. Você não foi á lugar nenhum depois desse
disparo, porque aqui não é o “mundo”, meu caro... Para irmos direto ao ponto,
você está no inferno, Oscar.
- Inferno?
- Sim. O “seu” inferno, Oscar. Um inferno
só seu.
- Mas o que eu fiz para estar aqui?!- ele
esbraveja apavorado – O que eu fiz?!
- Você não fez nada de especial.- diz o
estranho homem – Me entenda, Oscar, preste bem atenção ao que eu vou lhe dizer.
Você não fez nada de especial. Eu vim aqui para lhe buscar, apenas, e não serei
eu quem lhe dará as respostas que você quer. Nem as de que você precisa.
- Eu estou do lado de Deus! – grita Oscar
com energia – Dá pra você entender isso?! Eu estou do lado de Deus! Porque ele
me abandonaria neste lugar? Eu não fiz nada!
O homem que está
a falar com Oscar suspira e parece meditar por um instante. Então ele se
levanta, agarra Oscar por um braço, e com bastante solicitude o leva a
sentar-se no sofá. Ele, então, volta a se sentar na poltrona.
- O inferno não está em lugar nenhum,
criatura. Este “inferno” onde você está trancado há tanto tempo que lhe fez
pensar ser esta a “vida normal humana”, nada mais é do que um invólucro gerado
por tua própria consciência alimentada pela culpa. – começa a explicar o homem,
pacientemente.
- Quem é você? – pergunta Oscar, num
súbito.
- Você pode dizer que eu sou um “anjo”.
Não seria correto chamar-me “demônio” porque eu não estou aqui para lhe fazer
mal.
- Culpa?
- Sim. Da mesma forma como você pode muito
bem me chamar de “anjo”, podemos chamar toda esta ilusão de “inferno”,
entretanto, ao mesmo tempo não estamos nem um pouco errados em denominarmos
esta tua própria criação de “inferno” porque a função d`ela é justamente essa:
A de atormentar a tua alma. A de fazê-lo sofrer.
- Mas eu não fiz nada!
- Sim, você fez. Em sua vida terrena você
foi uma pessoa odiosa, “Oscar”, mas preste atenção agora, criatura, ninguém o
condenou ao inferno. Deus não o condenou ao inferno.
- Não?
- Não, Oscar. Você mesmo se condenou,
segundos após deixar tua vida terrena. Todos nós somos fagulhas desprendidas
d`a Luz Infinita a que você denomina “Deus”, Oscar, e a parte de Deus que está
dentro de você, a centelha pura e imaculada da Verdade Absoluta que é você
mesmo, foi quem o condenou. Você mesmo se condenou. Sua própria consciência.
- Você é o demônio? – perguntou Oscar,
ainda confuso?
- Não, Oscar. Não sou. Onde está o
“demônio” neste inferno, Oscar? Você, alguma vez, já o viu? Digo, “pessoalmente”?
- Não... – ele responde, olhando para o
chão.
- Você não o viu, porque esse “símbolo”
não faz parte de tua formação, Oscar. Não fez parte de tuas fantasias, e nem de
teus símbolos. Como você nunca foi uma pessoa, digamos assim, religiosa, você
teve a (talvez) vantagem de sua consciência não ter te torturado com visões
horríveis como essa, de demônios grotescos que fazem maldades com as pessoas.
Acredite-me, Oscar, algumas pessoas têm a capacidade de gerarem “infernos”
horríveis dentro de si mesmas, de fazerem Bosch, Blake e Dante parecerem
ingênuos... – ele diz essas palavras com gravidade, parecendo buscar algo nos
olhos de Oscar - O “diabo”, Oscar, é um fantasma. Um fantasma gerado pela
maldade humana. De quem é a culpa de as desgraças que você viu quando estava
vivo? Sim, eu sei, você não se lembra de sua vida, apenas d`essa sua fantasia
horrível que você mesmo criou, esse mundo injusto e sádico onde você sempre
perdia. Mas de quem é a culpa dos assassinatos? De quem é a culpa da fome? De
quem é a culpa do ódio? Da maldade, enfim? Do “diabo”? Não, meu caro. A culpa é
apenas dos homens. O diabo é apenas um símbolo d`essa maldade humana, que pode
até mesmo ser visto como um “bode expiatório”. Está vendo? Até mesmo é, de
fato, um bode. Mas entenda-me, não estou defendendo ao diabo, porque ele nada
mais é do que isso: um fantasma. Onde terá o diabo poder, onde Deus está? Em
lugar algum. Quando o diabo poderá destruir uma pessoa protegida por Deus?
Nunca. Não tenha medo, Oscar, porque não há nada a temer em um universo
governado por Deus. A única coisa que vossa mercê necessita, agora, fazer, é
perceber, descobrir, porque sua consciência o torturou tanto. Diga-me, Oscar, o
que, exatamente, sua própria consciência usou para te machucar?
Oscar, então,
explode em um forte choro, escondendo seu rosto com suas mãos. Ele fica por um
bom tempo chorando forte como se fosse um garoto, e o estranho homem apenas
espera calado, calmamente sentado ao seu lado. Quando Oscar parece se cansar de
chorar, diz:
- Ela fez o meu próprio orgulho me
massacrar – começa Oscar, surpreso pelo próprio súbito entendimento – ela
transformou minhas próprias qualidades em defeitos em um mundo imperfeito onde
eu não admitia perder. E eu me tornei em um fascista moral, capaz de matar aos
que eu julgava serem inferiores como se eu fosse um nazi. E, então, todas as
minhas qualidades apodreceram maculadas pelo rancor e pelo orgulho.
- O que você aprendeu, então, com tudo
isso? – pergunta o homem, com curiosidade.
- Que a virtude que espera uma recompensa
é uma virtude suja.
- Bom. – disse o homem – muito bom. Se
você tivesse percebido isso antes de efetuar o disparo, teria saído d`esse teu
pesadelo do mesmo jeito. Mas sem nenhum sofrimento. Venha, garoto, você já
sofreu demais. Agora você precisa descansar e, depois, continuar a sua jornada
por este nosso maravilhoso universo. Claro, quando você estiver preparado, e
assim o desejar.
- Eu acredito em Deus. – diz Oscar,
comovido – Eu acredito em Deus.
- Eu sei, Oscar. Eu sei.
Finis operis
“Percorrendo os sete infernos, vê o
Paraíso.
Vá, ele diz
Você não tem nada a perder.”
Rose Ausländer
Rose Ausländer
3 comentários:
Esta historia na verdade é uma especie de desabafo interno... ou, melhor dizendo, um suicídio virtual rsrssr... comecei a escreve-la sem a menor ideia do rumo q ela iria tomar... talvez seja mais uma de minhas catarsis
Show de bola Sides!!
eu acredito que funciona realmente desta maneira!
Quando penso que não, lá vem meu irmão gênio pra me impressionar e surpreender com sua hipersensibilidade e criatividade...
Simplesmente sensível, imprevisível e delicioso este conto!!!
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