inferno. [ Do lat. infernu.]
S. m. 1. Rel. Lugar de privação definitiva da
comunhão com Deus. Lugar onde se encontram os que morreram em estado de pecado,
submetidos á repreensão divina.
demônio. [ Do gr. daimónion,
pelo lat. daemoniu.] S. m. 1. Nas religiões
judaicas e cristãs, cada um dos anjos caídos do inferno, sujeitos á Lúcifer ou
Satanás.
“Para que tua
felicidade não nos torture,
Você se cobre dos
apetrechos do diabo...
De diabólica astúcia
e indumentária.
Em vão! Pois em seu
olhar
Reluz a santidade”
Friedrich Nietzsche
Inferno. Lugar do
terror absoluto, e povoado por apenas duas espécies distintas: os humanos
mortos condenados por seus crimes contra a vida, e seus respectivos e
eficientes algozes. Seus atrozes verdugos, conhecidos genericamente como
demônios. Neste lugar horrível, apenas há lugar para a dor.
Em um de seus mais cruéis departamentos (cujo nome omitirei por razões
pessoais) encontrava-se um demônio da famosa casta dos Incubbus, que por mais
uma das infinitas ironias deste nosso insondável universo possuía uma estranha,
anormal propensão para a arte e a virtude. Sim. Acredite se quiser, este
ex-anjo cuspido da Cidade de Prata havia por algum motivo qualquer cansado das
sádicas diversões infernais, e agora - apartando-se de seus semelhantes -
isolava-se para criar e compor.
Sentado solitário em um canto onde não pudesse ser visto por ninguém, Plutus
dedicava-se por horas a fio a escrever poemas com a vergonha de quem sabe que está
fazendo algo abominável. Plutus era – para o horror de todo o universo – um
demônio poeta. Suas tardes solitárias com seus papéis e sonhos foram durante
muito tempo ignoradas por seus irmãos, até que seu olhar e trejeitos finalmente
o denunciaram. Plutus já não era mais visto torturando ou enganando aos homens,
e seu rosto há muito tempo já havia abandonado o semblante de rancor e zombaria
que muito caracteriza sua espécie. Não demorou muito para que ele fosse motivo
de comentários - no princípio, esparsos – entre os outros demônios até que, por
fim, convencidos de que Plutus já não era mais um deles, reuniram-se em uma
turba, lincharam-no eficiente e impiedosamente até quase matá-lo (só não o
mataram porque os demônios não morrem), e abandonaram-no – ou o que sobrou da
pobre criatura - do lado de fora dos enormes portões do Pandemônio. E
Plutus fora, assim, expulso do inferno pelos seus próprios irmãos.
No princípio Plutus chorara muito, pois sabia que não havia lugar para ir. A
Cidade de Prata, supostamente, jamais aceitaria de volta a qualquer decaído:
até então nunca ninguém havia escutado falar de algum renegado que houvesse se
arrependido e – perdoado por Deus e pelos seus soldados – aceito novamente, e
retornado para lá. E só a idéia de encarar a algum Arcanjo ou Serafim de frente
o deixava aterrorizado. E o único lugar do universo inteiro que ele um dia pôde
chamar de “lar” depois de sua caída – o inferno – nunca mais o receberia de
volta. Plutus chorava sozinho e sem esperança alguma, abraçado como uma criança
aos seus amarrotados e encardidos papéis, seus poucos poemas que haviam
escapado do linchamento com ele. Sua situação era a mais desditosa e cruel de
toda a história da criação: era ele um fugitivo de Deus, e de Satanás. Suas
lágrimas caíam sobre seus poemas, borrando-os, e seu choro baixinho e
desesperançado não fora ouvido por ninguém. Plutus era, naquele momento, o ser
mais solitário e desgraçado de toda a existência.
Durante muito tempo o pobre demônio vagou errante pelas fronteiras de todos os
mundos, sem poder estabelecer-se em lugar algum. Plutus naturalmente
aterrorizaria a qualquer ser vivo que o enxergasse - por sua aparência
naturalmente demoníaca - por isso ele mesmo tratou de evitar ser tratado com
repugnância, ojeriza ou pavor pelos outros seres, mantendo-se eficazmente
isolado de todos. Chegando ao mundo dos homens, buscou refúgio em uma
inacessível floresta, passando seus dias de solidão alternados entre a profunda
tristeza de saber-se incompreendido e injustiçado pela vida, com seus raros
momentos de meditação, contemplação, e a criação de novos (e mais melancólicos
que nunca) poemas.
Até que em um dia qualquer Plutus escuta uma voz humana no meio da floresta, e
curioso aproxima-se dela. Com muita cautela para não ser visto, esconde-se por
detrás de uma macieira e percebe que a voz que ouvira era a de um jovem rapaz
que, ajoelhado, fazia suas orações. Tratava-se de um monge franciscano que -
buscando sua santidade - havia se afastado do convívio com as pessoas,
resignando-se a passar o resto de seus dias jejuando só, acompanhado apenas de
sua fé e de suas orações. O pequeno demônio sabia da existência de monges, e
muito bem sabia que havia encontrado a um jovem santo. Curioso e ao mesmo tempo
maravilhado, Plutus passou dias e dias observando-o á distância, completamente
admirado pelo fato de que aquele jovem homenzinho não parecia nem um pouco
interessado pelos prazeres da matéria: comia apenas pão, bebia apenas água, e
desinteressadamente passava seus dias louvando a Deus em suas diárias e
metódicas orações. Nada mais, além de Deus, parecia ter valor algum para aquele
rapaz.
Com o passar do tempo – de tanto observar ás escondidas - Plutus não só já
sabia de cor ao Pater Noster e todas as demais orações
cristãs, como também havia aprendido com o jovem que a sua solidão não era algo
tão terrível assim, pois era algo que o próprio monge também passava... e por
sua livre e espontânea vontade. E com o passar do tempo ele também já havia
absorvido todo aquele espírito de renúncia e compaixão que transbordava pela
serenidade daquele homem de tal forma, que os pequenos animais da floresta que
brincavam e acompanhavam ao monge - até mesmo os mais puros, como os pequeninos
e frágeis pássaros, esquilos e borboletas – agora já aproximavam-se
corajosamente também de Plutus, enchendo seu coração de demônio com uma ternura
que ele jamais imaginou um dia ser capaz de sentir. E, pela primeira vez em
toda a sua vida, o renegado Incubbu sentiu em seu coração o que os humanos
chamariam de “felicidade”, e – arrependido amargamente de todas as atrocidades
que cometera no passado – Plutus chorou copiosamente pela segunda vez em sua
existência, mas esse era um choro bem diferente do anterior... Suas lágrimas,
agora, eram de redenção.
Impelido pelos pequeninos animais (que agora até mesmo comiam de sua mão)
Plutus, depois de muito pensar, decidiu que tentaria comunicar-se com o jovem
santo. Tímido mas decidido, dirigiu-se á beira do rio a onde o rapaz sempre ia
para buscar água, e sentou-se furtivamente a esperá-lo. Depois de algumas
poucas horas de espera, o rapaz finalmente aparecera. Era chegado o momento.
Quando o rapaz terminara de encher seus cântaros com água, o resoluto demônio
saiu por trás da mesma macieira de onde ele havia se escondido em a primeira
vez em que viu ao monge e aproximou-se devagar, até que o ruído dos seus
próprios passos atraiu-lhe a atenção. Quando por fim o monge olhou para Plutus
e viu que tratava-se indubitavelmente de um demônio, assustou-se de forma tão
intensa que quase desfalecera, mas manteve sua postura e começou a tentar
esconjurá-lo em latin, recitando rápida e fervorosamente suas
sentenças.
- Imploro-te,
meu senhor, não tenhais medo – disse Plutus calmamente – não quero causar-te
mal algum.
- Vade
retro, daemoniu – exclamou o monge, desesperado – “Não afastes de mim
teu espírito de força, Senhor”...- começou a recitar, olhando para a sua cruz
- “não me deixes cair em tentação.”
- Por
favor, senhor, acredita.
- Que
ardis o trazes a mim, decaído? Serei eu tentado por vós da mesma maneira como o
foi Jesus, em o Monte das Oliveiras? Perdes teu tempo comigo, infame
embusteiro. De mim, nada poderás lucrar.
- Senhor,
não me trates dessa forma... Sei bem o que sou... mas quero que saibas que
vejo-te há muitos dias, e não só respeito e admiro vossa empresa, como desejo
servi-lo, acompanhá-lo... e aprender contigo a amar a esse Deus a que tanta
fidelidade e carinho dedicas.
- Como
te atreves a proferir tal blasfêmia? – gritou o rapaz – como podes pensar que
eu acreditaria em semelhante absurdo? Um demônio que quer aprender a amar Deus!
Aterroriza-me pensar que espécie de indústria macabra estais a tramar com
semelhante calúnia...
- Como
poderei convencer-te, ó santo e imaculado senhor?... Dou-te minha palavra de
honra de que venho cá à vossa mercê de mui boa fé...
- Jamais
crerei em tuas venenosas palavras, Satanás – respondeu o monge com a voz
trêmula, afastando-se de costas com seus cântaros de água, trôpego – sei que
meu amado Pai permitiu que tu viestes a mim com o intuito de testar minha fé...
e digo-lhe que não temo que me possas fazer mal algum, pois muito bem sei que
Ele jamais me abandonará. Nada podes fazer contra mim, imundo, pois nenhum
desejo carnal corrompeu meu espírito. Volta para o inferno pagão que o expeliu,
monstro maldito.
E, dizendo isto, o rapaz rapidamente desapareceu na floresta, deixando para
trás um desesperançado semblante no rosto de Plutus. E, uma vez mais, seu
coração estava dolorosamente despedaçado.
Depois desse diálogo com o jovem monge, Plutus nunca mais o encontrou. Ele
mesmo não teve a coragem de aproximar-se novamente de onde o rapaz vivia, sabendo
que isso não traria nada de positivo, e muito pelo contrário, apenas aumentaria
o terror e a desconfiança do monge para com suas verdadeiras intenções. E pouca
coisa é pior para uma alma bem-intencionada do que ser vista injustamente por
todos, não importando o que faça.
Só
lhe restou resignar-se com a sua situação da melhor maneira que pudesse.
E assim foram se passando os anos, um após o outro, até que depois de muitas e
muitas décadas de solidão Plutus havia se tornado um velho e solitário eremita
de chifres, com uma longa e branca barba, e completamente apartado da
inteligência dos homens. Depois de tanto tempo de solidão, já há muito tempo
não era capaz de escrever uma palavra sequer, tantos anos em que havia ficado
sem comunicação alguma com outro ser que falasse. Nem mais se lembrava de como
escrevia seus belos poemas: todos os seus escritos foram largados ao chão
naquele mesmo fatídico dia em que se aproximara de aquele jovem.
Seus dias resumiam-se em beber água, comer maçãs, e fugir da aproximação de
qualquer ser humano, para não passar pelo desgosto de ser visto como algo
horrendo e maligno. Plutus agora temia encontrar-se com qualquer pessoa, santo
ou ladrão, pois sabia que tal encontro só lhe traria novamente toda a dor de
sua sina. Corria apavorado para a direção oposta quando escutava vozes, e
escondia-se como um cão vadio.
E como estava vivendo no plano material (na Terra), junto com o avanço de sua
velhice sua saúde foi se desvanecendo, pouco a pouco, até que em uma noite
escura qualquer - sem vento e sem lua no céu - Plutus deitou-se ao relento para
morrer da mesma forma como passou quase toda a sua existência. Sozinho.
E então, quando vira que chegava sua hora de partir, imagens de toda a sua
infrutífera busca por uma vida nobre e pacífica, e toda a hostilidade que
sofrera de todos os outros demônios - e dos homens - passaram de uma só vez por
suas lembranças, e a certeza de que finalmente, com sua morte, todo o seu
sofrimento e desesperança findariam, fez com que junto com seu último suspiro
de vida rolasse em sua face uma única e solitária lágrima.
Solitária
como ele. E Plutus morreu.
Epílogo
Sua consciência desprendeu-se de seu velho corpo e subiu, fazendo-o olhar
assustado para baixo e ver a si mesmo morto ao relento, em meio á escuridão da
floresta. Viu pela primeira vez como seu corpo estava velho e disforme, mas
quando olhou para si próprio (e não para o corpo material que jazia lá em
baixo) viu que já não mais possuía aquele aspecto demoníaco de antes, e sim
havia voltado para uma forma - tão antiga quanto bela - que um dia ele possuiu,
há incontáveis milhares de milhares de anos atrás, quando possuía hermosíssimas
asas brancas e habitava junto com outros anjos a maravilhosa Cidade de Prata.
Como todos os outros demônios, um dia Plutus fora um dos soldados do Altíssimo,
e agora talvez pela primeira vez na história de todo o universo Deus perdoara a
um decaído, aceitando-o de volta ao seu antigo lar.
Então Plutus decidiu que voltaria, uma vez mais, a chamar-se Mercyel, voou em
direção ao alto até poder ver, ao longe, á Cidade dos Anjos, e perceber que lá
uma grandessíssima celebração começava a ser iniciada - com a alegre participação
de todos - e Mercyel então aproximava-se, quase certo de que sabia para quem
toda aquela celebração estava sendo preparada, mas não chorou. A época das
lágrimas havia terminado.
Finis Operis
“Nem sequer entrevejo
o céu...
Meus olhos estão
toldados de lágrimas.
O fogo do inferno é
uma fagulha ligeira, comparado ás labaredas a devorar-me a alma.
O Paraíso é, para
mim, somente um instante de paz.”
Omar Ibn Ibrahim,
“Rubáiyát” (aprox. 1100 d. C.)
“...Eu gostaria de
ser uma montanha.
Uma montanha enorme e
verdejante.
Alcançaria as
nuvens...
Magnitudes divinais.
Sou
um escaravelho acostumado a altíssimas temperaturas...
Mas a minha alma
ainda é verdejante.
Aquele que se
destemer, e ir além,
descobrirá onde a
música ganha sabor e cor...
E a tempestade
esvairece.”
{fragmento de um
poema branco feito por uma garota humana (R. C.), supostamente dedicado á
Mercyel}
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