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domingo, 31 de agosto de 2014

O KUNG FU É EFICAZ COMO LUTA?





     Durante os últimos trinta anos vimos o surgimento de toda uma nova geração de lutas marciais impulsionadas pelo MMA, que são os modernos Torneios de Lutas Marciais Mistas derivados do antigo "Vale-tudo" da década de noventa. Até meados de os anos oitenta todas as diferentes técnicas de os mais variados países sempre se mantiveram em um aparente equilíbrio com relação ao número de praticantes e escolas, e qualquer discussão a respeito de qual delas seria a mais eficaz seria um tema sem conclusão.
    

     Entretanto, após a modernização - e até mesmo reformulação - de as técnicas do Jiu-jitsu no Brasil após a chegada de o célebre mestre Conde Coma ficou-se bastante notória a sua maior eficácia como luta quando confrontada com qualquer outra técnica. O Jiu-jitsu, apesar de não focar em golpes de contusão como murros ou chutes talvez seja, de fato, a técnica de luta mais funcional de todas, e justamente por esse seu aspecto estratégico de se focar em a completa imobilização do adversário. Grosso modo, não é injusto dizermos que o Jiu-jitsu torna-se, por fim, mais especificamente uma espécie de "anti-luta", pois que a sua tática - apesar de bastante ofensiva - destina-se tenazmente a impossibilitar o oponente de atacar.


     Justamente por essa abordagem marcial estratégica que se originou seu nome, cuja tradução livre poderia ser algo como "luta suave", o que enfatiza o seu aspecto estritamente calculista em contraposição a qualquer outra forma de luta que venha abranger golpes contusivos, como o Muay-Thai, por exemplo.  


     Outrossim, na verdade as técnicas do Jiu-jitsu pouco possuem de "suave", visto que grande parte de seus ataques - em golpes como os famosos "cervicais" e as chaves "Ezequiel" e "Kimura" - focam em estrangulamentos, deslocamentos de membros e até mesmo em fraturas que podem causar severos traumas como até mesmo paraplegias. E também é importante frisarmos que essa incontestável superioridade do Jiu-jitsu quando confrontada com qualquer outra forma de luta em um ringue é apenas uma realidade com respeito a uma hipotética luta entre apenas duas pessoas, e justamente por esse seu enfoque característico em uma luta corporal à curta distância.


Essa superioridade do Jiu-jitsu facilmente se esvairá em qualquer combate contra mais de um oponente.



Mas, e quanto ao Wushu? Porque não vemos a verdadeiros lutadores de Kung Fu em esses famosos torneios de lutas mistas?


     Primeiramente, porque grande parte de o antigo e verdadeiro Wushu Tradicional praticado na China focava em um eminente combate de vida ou morte. Em as formas baseadas em os animais que possuem garras, por exemplo, um longo, severo e doloroso treinamento era realizado pelos monges lutadores ao extremo de adquirirem força física em suas mãos para até mesmo serem capazes de esmagar e arrancar aos órgãos internos de seus adversários com suas próprias mãos. Óbvio que jamais seria admissível a aplicação de tais técnicas em uma competição esportiva moderna.


     O primeiro Chin Na que aprendi com meu mestre de Garra de Águia, por exemplo, tratava-se de uma técnica para defender-se de um gancho com um cruel deslocamento de cotovelo, tido por algumas fontes como a fratura mais dolorosa que um ser humano pode sentir. Em outro Chin Na - que finalizava com um estrangulamento com uma mão só usando-se os dedos em garra - nosso Sifu nos explicou que para a correta aplicação de tal técnica deveria-se buscar encostar as extremidades do dedão e do indicador dentro da própria traquéia de seu oponente. Citemos ao Tang Lang (Louva-deus) como outro exemplo: golpes fulminantes com as extremidades dos dedos em órgãos sensíveis, como os olhos e a jugular. Também vi a uma demonstração de um amigo que praticava ao Loong Quan (forma do dragão) de um golpe que visava teoricamente entrar com os dedos em garra pelos lábios do adversário para causar um horrível rasgo na pele de seu rosto, ou seja, tais técnicas visavam obviamente a um combate que somente terminaria com a morte, e causando-se danos estruturais grotescos visando-se, talvez, intimidar com tais demonstrações de crueldade e sangue frio aos inimigos sobreviventes que os testemunhassem.


     Em suma, não fica difícil compreendermos porque o Wushu tornara-se apenas uma filosofia de vida para seus praticantes de hoje em dia. Nenhuma escola de "kung fu" atual ensina a matar. Deve-se compreender que na época em que a arte-marcial chinesa se desenvolveu fora um cruel período de muitas guerras, e não apenas entre países, mas entre tribos, vilarejos e até mesmo famílias. Em essa estranha e mórbida época das "conquistas de territórios" era muito comum um pai de família manter em sua casa em algum lugar a uma espada muito bem afiada, para o caso de alguma turba de vagabundos invadi-la para roubar-lhe seus bens e sua mulher.


     A verdadeira tradição da arte marcial chinesa Wushu deve focar apenas em o ideograma conhecido como "GONG", ou seja, o "kung fu" chinês jamais deve focar em relez "campeonatos esportivos", ou em "ganhar" ou "perder".


     O Wushu jamais deve ser usado em competições que visam o lucro. Nenhum verdadeiro praticante de Wushu treina para fazer "exames de faixa", ou para colecionar "medalhas de ouro".


     O verdadeiro praticante treinará todos os dias, e por toda a sua vida...

Mas todo esse treinamento terá como fim apenas o próprio treinamento.


O praticante de Wushu que se vangloriar de sua faixa preta e de suas medalhas, ou que entrar em uma competição por dinheiro, nunca será, de fato, um Sifu. 

Será apenas um lutador.



Este texto faz parte do livro de Herácides Gimenez (Saides Lamarca) chamado "A Dança do Tigre Branco"




*



OS PRINCÍPIOS DO TAO E DO CONFUCIONISMO: AS DUAS BASES FILOSÓFICAS DE O KUNG FU INTERNO


O Tao é imutável. Sem nome.
E, embora originariamente ele seja ínfimo,
Tornará indestrutível aquele que o encontre
Tao te Ching

    A história da Terra – e da raça humana - sempre apresentou repentes súbitos de gênios que alavancaram a evolução humana. Em determinados períodos da história - em lugares extremamente longínquos entre si - apareceram simultaneamente homens extremamente evoluídos que mudaram para sempre toda a humanidade. No século VI a.C. tivemos o mais extraordinário surgimento de avatares de a história d`este nosso planeta: A Grécia nos trouxe Pitágoras e Heráclito, a Pérsia apresentou-nos Zoroastro (ou Zaratushtra), a China abrigou Lao Tse e Confúcio, e a Índia surpreendeu ao mundo com a pessoa de Sidharta Gauthama. Nesse período inicial da história da civilização fora criado na Índia o Budismo.


    Esse mesmo budismo originado na Índia espalhou-se rapidamente por toda a Ásia em diferentes escolas de pensamento, onde se destacaram principalmente duas: A Hinayana (ortodoxa) na Tailândia, Burma e Sri Lanka; e a Mahayana, estabelecida em o Nepal, Tibete, Japão e China. Como a intenção destas páginas é a de falar apenas sobre a arte marcial da China e de sua filosofia implícita, concentraremo-nos apenas em os aspectos do budismo Mahayana (chamado por seus adeptos de “grande veículo”), com a sua filosofia chinesa Hua-yen.   


    Da mesma forma como apenas duas colunas sustentam toda a filosofia budista, também duas colunas sustentam toda a filosofia “kung fu” do Wushu; Prajna e Karuna (respectivamente “intuição” e “compaixão”) sustentam a filosofia Mahayana, e o Wushu é sustentado pelo Confucionismo com o seu pragmatismo “kung fu” (ou seja, a busca da perfeição através da disciplina) somado ao Taoísmo de Lao-Tse, com a sua meditativa contemplação e conseqüente absorção/assimilação do “Caminho Perfeito” da natureza e de seus seres vivos.



Lao Tse

     Lao Tse (da mesma forma como Kwan Kung, Bodhidharma e Confucio) tratou-se de um lendário sábio tão popular em toda a China antiga que a sua verdadeira história terminou por se perder em um vastíssimo oceano de lendas apócrifas a ele atribuídas. De acordo com as principais d`elas, Lao Tse era um homem velho e careca com longuíssimas barbas brancas que perambulava pela China sem destino fixo montado em um plácido e manso touro, seu único companheiro, e também o único “bem material” que ele possuía além de suas próprias roupas. Lao Tse finalmente se cansou do materialismo e ambição de seus semelhantes e decidiu deserdar acompanhado apenas de sua montaria para os confins da Ásia Central. Chegando em a fronteira da China, Lao Tse foi abordado por um guarda da fronteira chamado Yin Hsi (ao que tudo indica um homem bondoso e inteligente), que muito se interessou pela filosofia do humilde velho, mas dispondo-se a apenas permiti-lo passar com seu touro pelos portões e partir do país depois que ele lhe estivesse escrito um tratado completo sobre seus pensamentos e sua filosofia. Lao, então, pernoitou pela última vez na China e fez a vontade de Yin Hsi, escrevendo-lhe o tratado de 5.000 palavras conhecido como “O Clássico sobre o Caminho Perfeito”, ou “Tao Te Ching”. Aparte as lendas e romantizações, tal livro de fato existe (inclusive foi bastante usado por mim em grande parte das citações d`esta minha obra que está agora em tuas mãos, caro leitor!) e é considerado juntamente com o Cânone Taoísta Daozang como o autêntico cerne do budismo Chan, também chamado de Zen Budismo. O alicerce filosófico de toda a China é o próprio Tao Te Ching!


Confúcio, ou K`ung Fu Tzu



     Pelo que meus escassos conhecimentos e exaustivas pesquisas me fizeram suspeitar, a expressão chinesa “gong fu” parece derivar etimologicamente de o nome chinês “K`ung fu Tzu”, o antigo sábio taoista conhecido pelos Ocidentais como “Confúcio”. Em a edição brasileira do Lun Yü ("Os Analectos", L&PM, pag.233) vemos que "fu Tzu" é traduzido como "Cavalheiro", ou "mestre".

      Confúcio nasceu em o reino de Lu no ano 551 a.C., e foi um grande sábio venerado por seus discípulos, que o seguiam com inexorável fidelidade. O conceito central de toda a sua filosofia era o Chün Tzu, ou a “busca pelo aperfeiçoamento moral, e pela prática constante da benevolência”.

     Para Confúcio, a busca infinita pela virtude não deveria jamais ser feita pelo homem que buscasse d`ela qualquer tipo de recompensa ou vitória: a recompensa pelo aperfeiçoamento moral e pela prática constante da benevolência não virá em vida...

E talvez nem mesmo depois da morte.


A virtude deve ser perseguida pelo homem digno apenas por seu próprio valor intrínseco, e com a completa indiferença quanto ao sucesso ou fracasso, ou mesmo o mero reconhecimento de seus esforços e/ou suas obras.


A única recompensa a buscar é o próprio aperfeiçoamento.


“Quanto a colocar o caminho do Chün Tzu em prática, o homem benevolente deve saber o tempo todo que isso é uma causa perdida”
LunYü



O que é o TAO

Não viveu em vão aquele que descobriu a verdade sobre o Tao antes de morrer”  


     A tradução literal para Tao (ou Dao) é "caminho", mas esse caminho a que a filosofia chinesa se refere não é um caminho físico, e também não seria, necessariamente, um suposto "caminho espiritual transcedental" a que alguém poderia trilhar. Na verdade, esse caminho a que ele se refere seria O caminho percorrido pelo próprio universo, que em sua síntese máxima seria dividido por duas forças opostas e, ao mesmo tempo, complementares.



     Ou seja, de acordo com a síntese de essa filosofia o Tao seria o caminho cósmico absoluto e imutável percorrido pelo Te. "Te" é a sua contraparte que representa a virtude universal, uma espécie de "justiça-cósmica" que trilha o próprio Tao como se ele fosse uma estrada. A tradução mais próxima para Te seria "Virtude", aquela coisa indefinível e amorfa, uma espécie de "poder do amor" que mantém a todas as coisas existentes coesas, ou seja, estáveis e em harmonia.



    Claro que com "harmonia" apenas nos referimos a seu estado-de-ser, visto que a desarmonia também é uma parte essencial do Tao como toda e qualquer outra. Aliás, é justamente essa a característica fundamental do pensamento filosófico oriental, e justamente essa característica é a que mais difere do pensamento Ocidental: O Ying e o Yang são opostos... Mas um é tão importante quanto o outro para o equilíbrio de o universo.


     Para um Taoista, o ouro seria uma pedra amarela insignificante se fosse facilmente encontrada pelo chão em qualquer lugar, e justamente por isso é que as pedras comuns são tão importantes. Somente a existência do "feio" faz o "belo" adquirir algum valor. Se tudo no universo fosse belo e grandioso, nada no universo seria belo e grandioso.

   A bondade, a compaixão, a redenção e o perdão talvez não seriam qualidades tão valorosas e tão nobres se não fosse pela predominância de suas contrapartes em o cotidiano da vida.  


     Em várias obras e estudos que pesquisei sobre o Tao,e até mesmo em o próprio Tao Te Ching de Lao tse, vi que ele é mui freqëntemente mal traduzido e, consequente e negativamente, mal-interpretado.   


    Usando-se a própria filosofia chinesa para expressar o que é o Tao, tomemos um homem hipotético em seu caminhar para seu lar: onde está o Tao em essa cena? Em o homem? Não. Em seu lar? Não. Em suas pegadas? Não. O Tao é o trajeto, o Tao é todo o caminho percorrido. Fluxo contínuo. Mudança contínua.

     Vemos o Tao em o instinto dos animais, que nascem e, segundos após, levantam-se sobre suas patas e começam a caminhar.  

     Vemos o Tao na água que flui da nascente do alto de uma montanha para baixo. Ela desce vagarosamente e acaba, por fim e sem nenhum esforço, arredondando ás mais duras, pontiagudas e gigantescas pedras.

     Sem dúvida alguma a melhor forma para entendermos ao conceito Tao-Te-Ying-Yang é com a observação da natureza e de tudo o mais que forma o universo.

     Qualquer animal predador, por mais perigoso que seja, também tem seus momentos de ternura com suas crias.

Em algum lugar da África ferozes panteras negras amamentam suas crias com carinho.

Em um lugar qualquer do Vietnã cobras mortais fazem ninhos onde depositam seus ovos e aguardam pacientemente a sua eclosão.

Em algum extremo da Antárdida um gigantesco e assustador urso pular pesca peixes com suas mãos para sua família.


O verdadeiro equilíbrio do Tao somente ocorre quando finalmente aprendemos o "não lutar-lutando", ou seja, a não chocar-se contra algo oposto usando-se de uma força oposta, e nem de uma força idêntica e, sim, absorvendo-a e anulando-a.

Até mesmo transmutando-a.


KIN LAI!


Trinta raios convergentes unem-se no cubo, formando uma roda,
Mas é o seu vazio central que permite a utilização do carro.
Recortai no espaço vazio das paredes as portas e janelas
A fim de que um quarto possa ser criado.
Desta forma o ser produz o útil...
Mas é o não-ser que o torna eficaz
Tao Te Ching





Este texto é um trecho do livro de Herácides Gimenez (Saides Lamarca) intitulado "A Dança do Tigre Branco"



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CONHEÇA O WUSHU, MAIS CONHECIDO NO OCIDENTE COMO "KUNG FU"


Há incontáveis anos os homens combatem violentamente entre si. Lutam por territórios, lutam por ouro, e –individualmente – lutam por sua honra, por sua família, e por sua mulher. Muito provavelmente, os homens lutam desde que foram criados. Provavelmente esta tenha sido uma de suas primeiras ações. E a primeira forma de luta, indubitavelmente, fora o combate com as mãos limpas. O combate nu, sem armas.



     Em quase toda a parte do sudeste do Oriente encontramos alguma forma específica de arte-marcial; o Vietnã tem seu Qwan Ki Do, a Coréia lutas como Haidong Gumdo, o Tangsudo e o Taekwondo, na Tailândia temos o Lerdrit, o Silat Pattani, o Muay Boran e o Muay Thai, mas ninguém poderá discordar que nenhuma outra civilização desenvolveu a luta como uma forma de arte tão intrincada e abrangente assim como o fizeram os chineses com seu Wushu. Durante milhares de anos a fio.



     Para o lutador chinês - ou qualquer outra pessoa que por ventura vier a praticar o venerável Wushu - lutar não é simplesmente atacar ou se defender a esmo. A única forma de se vencer a um inimigo maior e/ou mais forte será sendo mais ágil e/ou utilizando-se de golpes inesperados, complexos e eficazes. Golpes perfeitos. Através de um treinamento constante e disciplinado qualquer homem pode se tornar em um oponente imbatível para um ser humano comum, e apenas ser ameaçado por algum outro que porventura também tiver trilhado a mesma estrada do aperfeiçoamento marcial.



     Em nosso cotidiano não precisamos procurar muito para encontrar em qualquer cidade ou vilarejo a homens de índole violenta que parecem sempre estar procurando qualquer tipo de confusão. Estranhamente, esses homens parecem sentir prazer em causar prejuízos ao próximo, em agredir as pessoas pacíficas como se o mundo inteiro lhes devesse algo. São os ditos “marginais”, “bandidos”, pessoas más que não sentem qualquer empatia pelo sofrimento alheio e estão sempre dispostas a roubar, agredir, e até mesmo matar.



     Mui entretanto, por mais violentas e perigosas que essas pessoas possam parecer á primeira vista (e realmente o são para as pessoas comuns), quando desarmadas elas não representam ameaça significativa para um verdadeiro praticante de artes marciais. E, em alguns casos, até mesmo armadas. Presenciar uma luta entre um bandido comum e um praticante talentoso de wushu é uma cena humilhante e injusta, como a cena de um relez cão raivoso vadio a enfrentar um tigre.



     O praticante da arte-marcial terá sempre três opções, uma vez que o combate for inevitável: a primeira delas é forçar a desistência da luta por parte do agressor através da dor. Para isso ele usará de chaves de imobilizações (como as “Chin Na”, que são particularmente dolorosas), ou através de precisos golpes contusivos como murros, chutes ou tapas (por mais estranho que possa parecer para uma pessoa comum, um simples “tapa” aplicado corretamente por um lutador de Wushu pode nocautear uma pessoa). A segunda opção do lutador será quebrar os ossos e/ou deslocar as articulações (dedos, pulsos, braços, ou pernas). A terceira e última opção seria castigar o oponente com um ataque direto e fulminante em seus centros vitais. Não por acaso, uma das técnicas para esse fim é conhecido na china como “a porta que não deve ser aberta” (voltaremos a esse assunto mais adiante). Em suma, apenas em caso de vida ou morte.    




     Aparte a violência, o Wushu também pode ser visto como uma linda dança-marcial. Que outra “cultura da guerra” baseou seus ataques e defesas em movimentos de específicos animais, e até mesmo insetos como um singelo Louva-Deus?



     Desde a minha mais tenra infância eu, que escrevo estas linhas, sou um grande admirador d`esta surpreendente arte. Lembro-me perfeitamente que desde que já possuía quatro, ou cinco anos de idade, a arte marcial que eu conhecia pelo nome de “kung-fu” sempre me roubou quase toda a atenção e os meus sonhos de criança. E muitos anos antes de finalmente iniciar meu treinamento e colocar meu corpo em movimento de acordo com tal filosofia, estudei a fundo a história do Wushu e suas mais variadas técnicas através de dezenas de livros em português, espanhol (minha língua materna) e inglês. Foi com aproximadamente onze, ou doze anos, aproximadamente, mesmo período em que iniciei meu treinamento com Lian Jien Gun - a princípio de forma autodidata - com filmes, livros e vídeo-aula, depois sob a tutela de um primo distante, que em pouco tempo me abriu um leque enorme de novas possibilidades. Possibilidades que eu jamais havia imaginado. Foi com ele que aprendi que a beleza do Wushu nunca deverá fazer esquecermo-nos de sua função implícita, ou seja, que ele na verdade é uma forma de combate. Seus movimentos podem ser belos, mas, antes de tudo, devem ser funcionais. Com funcionais, quero dizer perigosos.




     Meu treinamento formal em escolas de artes marciais começou muito depois de esses meus estudos teóricos autodidatas. Eu mantive certo receio de finalmente partir para a prática por que já tinha plena ciência do quão complexo e profundo eram todas as bases filosóficas e práticas... Era-me vertiginoso vislumbrar todo aquele imenso caminho ainda a ser percorrido, e muito mais ainda, quase mesmo desanimador. Parecia tarefa impossível um ocidental como eu tornar-se um verdadeiro artista marcial. Ainda hoje me parece.  



     Por capricho do destino, meus primeiros Sifus foram totalmente opostos. O primeiro deles era uma pessoa cativante e bem-humorada que sempre condenou a violência física, e jamais admitiu que sua escola fosse vinculada a algum tipo de valentão. Em sua escola aprendi o Wushu Moderno. Ali nunca partimos para qualquer tipo de combate, todos os movimentos aprendidos (Taolus) eram praticados com leveza, e com fixação ferrenha em sua exatidão. Em essa primeira escola eu aprendi a simetria da arte. Quem me iniciou foram duas garotas que colecionavam medalhas de ouro (duas alunas veteranas que se tornaram instrutoras, fato bastante comum em as escolas de artes-marciais), e sinto-me confortável em afirmar que aprendi minhas bases modernas com duas belas mulheres.




     Na segunda escola eu aprendi a lutar. Em esta escola (que era de Wushu Tradicional) nosso professor demonstrava claramente o seu grande repúdio pelo Wushu Moderno, estereotipando-o como “afeminado e pouco-funcional”, e sempre fazia questão de demonstrar as aplicações reais de todos os Taolus, mostrando-nos como cada movimento de mãos e punhos sempre tinham uma função real e - na maioria dos casos em se tratando do Fan Tsi, o estilo tradicional que treinávamos - mortal. Ele sempre foi uma pessoa educada e civilizada, mas - diferente de meu primeiro professor – ele era duro e severo. Suas mãos eram pesadas como torniquetes, e até mesmo sua risada parecia demonstrar certa agressividade. Sua presença sempre me passou uma sensação que eu poderia facilmente expressar como se fosse a de estar-se perto de uma bomba em repouso pronta para explodir. Muito estranhamente, quando perguntado a ele sobre mim, soube que ele me descreveu como “um garoto muito revoltado”. Não sei se esta minha descrição de meus dois primeiros Sifus foi condizente, mas eu concluo afirmando que - apesar de sua seriedade e tenacidade - o segundo professor sempre foi uma pessoa bastante razoável, compreensiva, e até mesmo generosa. Mas é que me marcou bastante a diferença cabal entre os dois, um com sua suavidade, e o outro com seu vigor, e achei bastante interessante pra mim e para o leitor d`esses escritos compará-los, e ver como os dois estão corretos em suas verdades individuais. É exatamente isso. Nenhum dos dois está errado.



Acaba de vir-me á mente a imagem do Ying Yang, afinal de contas, como disse mui sabiamente Confucio,



Quando na companhia de dois homens, sou fadado a aprender com eles.
As virtudes do primeiro, eu as imito:
Os defeitos do segundo, eu os corrijo em mim mesmo.




     E, para encerrar este breve prólogo, concluo dividindo generosamente com os meus leitores os principais ensinamentos de cada um d`eles, aspectos sempre enfatizados pelos dois em suas respectivas aulas, e que - ao meu ver - são realmente fundamentais para o Wushu:



   - Primeiro de tudo, a base do cavalo (Ma bu) é o princípio, o meio e o fim do Wushu. Até mesmo um faixa-preta precisa manter constantemente sua base/cavalo. É ela que fortalecerá e preparará os músculos de suas pernas para os saltos. Enquanto que em a escola moderna sua base é alta - com a ante perna em um ângulo perfeito de noventa graus - na escola tradicional ela será baixa - com a ante perna quase em quarenta e cinco graus.

  - Saiba administrar sua energia e fôlego. Em os Taolus é fundamental saber a hora certa de relaxar os músculos e respirar, caso contrário será impossível finalizá-los com a precisão e força necessárias. Lembre-se de que eles foram desenvolvidos durante milhares de anos, e cada pausa tem sua finalidade.




Deixai que as rodas percorram os velhos sulcos já traçados
Tao Te Ching




  - Atente aos mínimos detalhes. É bastante comum de lutadores inexperientes (e até mesmo alguns “veteranos”) pecarem em detalhes como não fechar corretamente os punhos (com os polegares firmemente apoiados em os dois primeiros dedos) e não esticar totalmente os braços. Muitos praticantes priorizam a velocidade e se esquecem de que os movimentos devem ser bem definidos. Já vi muitos faixa-amarelas (e até mesmo vermelhas) realizando Taolus com movimentos imprecisos e feios. Principalmente entre os Ocidentais. Isso geralmente acontece por o aluno não ter desenvolvido satisfatoriamente cada movimento em separado. Em longo prazo, isso acarretará inevitavelmente vícios difíceis de serem corrigidos.



 -  Presta atenção redobrada aos seus ombros e, principalmente, à tua coluna vertebral. Os ombros devem estar baixos e relaxados. A coluna vertebral deve estar sempre reta.
     Como diziam os chineses a milhares de anos em suas Odes, o estudante deve sempre se aprimorar esmeradamente...





 “... como se fosse cortado como osso, polido como chifre...
E esculpido como jade.”






E isso é tudo.





Este texto é um trecho do livro de Herácides Gimenez ("Saides Lamarca") intitulado "A Dança do Tigre Branco"




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